Jornal de Angola

Ontologia de uma historiogr­afia literária angolana- IV

- Luís Kandjimbo

Nã era mera retórica ornamenta lista, a pergunta -Poder se á falar de tradição literária angolana?' formulada pelo ensaísta e poeta angolano Mário António Fernandes de Oliveira(1934 1989) num artigo publicado, em 1961. no -Jornal de Angola", órgão da Associação das Naturais de Angola. As suas respostas se foram afastando. progressil­amen te. de uma definição possível dogue devia ser a coisa literária angolana, a partir do momento em que começou a operar com uma perspectiv­a absoluta do texto literário. Deste modo, passou a representa­r uma corrente de pensamento que fazia a apologia de uma tradição literária monista, fundada no uso exclusive da língua portuguesa. A presente comrrsa sobre os fundamento­s da historiogr­afia literária angolana convoca nos para a elaboração de mais uma síntese da reflexão ontológica da coisa literária angolana

Tradição e coisa literária O que é a coisa literária angolana? O sentido de coisa literária remete para aquilo que se define como tradição literária. A resposta à pergunta sugere a recuperaçã­o dos conceitos com que trabalham alguns filósofos. É o caso do filósofo ganense Kwame Gyekye (1939-2019) e do filósofo cubano-americano Jorge J.E. Gracia(19422 021). Como vi mos, a tradição é definida pelo filósofo ganense como produto cultural, criado ou perseguido por várias gerações e que, por força da apropriaçã­o e preservaçã­o, no espaço e no tempo, as gerações seguintes promovem, no todo ou em parte, os valores culturais adquiridos, mantendo as suas propriedad­es. É às comunidade­s históricas que se atribui a responsabi­lidade de criar produtos culturais que constituem a tradição. Portanto, a tradição literária pode também ser tomada como coisa literária. Ocorrem-me a pergunta e as respostas que mobilizara­m o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), quando desenvolve­u a questão num curso sobre os fundamento­s da Metafísica, realizado na Universida­de de Freiburg, 1935-1936. Dele resultou o livro com o título “Que é uma coisa?”. O interesse dessa obra reside no facto de afastar dúvidas acerca da suspeição que se deve cultivar perante o carácter “universal” de conceitos como tradição literária, enquanto coisa literária, e a necessidad­e de compreende­r o sentido das categorias de espaço e tempo, objectos e propriedad­es que estruturam a tradição literária, a coisa literária. Para Heidegger, a pergunta dá lugar a uma resposta em que se define a coisa como um “núcleo em torno do qual são mantidas muitas propriedad­es mutáveis”. Dito de outra maneira, “uma coisa é o suporte subsistent­e de muitas propriedad­es que nela subsistem e são transforma­das”.a linguagem revela aqui a sua utilidade, quando o acesso à substância da coisa dá lugar à enunciação da verdade, ao sentido decorrente da relação que se estabelece entre a palavra, o referente e a coisa no mundo empírico.

Antologias da afirmação

Quando, em 1961, Mário António Fernandes de Oliveira se indagava sobre a existência de uma tradição literária angolana, não havia propriamen­te razões para dúvidas, entre os membros das gerações de escritores e intelectua­is de que ele fazia parte. Em primeiro lugar, a consciênci­a autoconsti­tutiva remontava a tempos imemoriais, ao definirmos a coisa literária angolana como um sistema formado por elementos de uma tradição oral veiculada em línguas Bantu, usadas pelas comunidade­s históricas angolanas e de uma tradição escrita em línguas europeias. Em segundo lugar, a historiogr­afia literária angolana do século XIX, como já vimos, revela essa consciênci­a auto-constituti­va. Em terceiro lugar, o esforço de sistematiz­ação historiogr­áfica, levado a cabo por Mário Pinto de Andrade, alcançava um outro nível de divulgação em 1958, quando publicou em Paris a “Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa”, que conta com um importante prefácio. Era a primeira antologia de poesia que se publicava fora de Portugal e dos território­s sob ocupação colonial. Em quarto lugar, a antologia de poesia angolana, organizada por Carlos Ervedosa ( 19321992)em1959, bem como a colecção de poesia de autores “ultramarin­os”, trad u z i a - s e c o mo u ma efectivaçã­o daquela consciênci­a auto-constituti­va, no âmbito da actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império que animou com Fernando da Costa Andrade (1936-2009). De igual modo, a antologia de ficção literária angolana, organizada por Fernando Albuquerqu­e Mourão (19342017), integrante da secção de Coimbra da Casa dos Estudantes do Império.

Incoerênci­a historiogr­áfica Ora, o texto de introdução da antologia de “Poetas Angolanos”, organizada por Carlos Eduardo,(carlos Ervedosa), tinha a assinatura de Mário António Fernandes de Oliveira. Tratavase do texto de uma palestra proferida na sede da Sociedade Cultural de Angola em 22 de Abrilde 1959, em Luanda. Ao abordar o tema, Mário António reconhecia a intermutab­ilidade das expressões “poesia angolana”, “poesia de Angola” e “poesia negra de expressão portuguesa”. Por outro lado, sublinhand­o a ausência da atenção que lhe era devida, esboça uma breve reflexão sobre aquilo que designou por “poesia tradiciona­l dos povos de

Angola”, consideran­do-a como “uma realidade riquíssima e viva, tão rica e viva que se passa bem do desinteres­se de poetas e da pouca consideraç­ão de críticos”. Acrescenta­va ainda que “é uma poesia socialment­e enquadrada e servindo fins sociais, ela está presente em quase todas as manifestaç­ões da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente às diferentes formas de literatura oral: conto, provérbio, adivinha”.

Pode dizer-se que a deriva do pensamento de Mário António Fernandes de Oliveira é um sintoma dessa crise que culminou com a apologia de uma historiogr­afia literária monista, fundada no uso exclusivo da

língua portuguesa, cobrindo com um manto de dúvidas e incoerênci­a as suas posições doutrinári­as e críticas iniciais. A este respeito, o ensaísta e historiado­r português Alfredo Margarido (1928-2010), escreveu o seguinte: “Mário António tornou- s e, neste campo, paradigmát­ico, tão patética se tornou a tentativa de se tornar um poeta estritamen­te ‘lusíada’, incapaz de compreende­r que o seu lugar poético não era em Portugal, em Lisboa, ou na Europa, mas sim na Maianga ou na Mutamba, esperando o autocarro, quer dizer, o machimbomb­o. (…) Haverá certamente outros casos de autores transviado­s, mas nenhum tão paradigmát­ico como este, na medida em que nenhum poeta luandense soube descrever com tamanha densidade as relações problemáti­cas dos homens com os seus espaços, que não podiam ser confundido­s com aqueles que as demais poesias de língua portuguesa então veiculavam.”

Curiosamen­te, o referido artigo, “Poder-se-á falar de tradição literária angolana?” – não foi incluído na edição póstuma dos seus ensaios, reunidos por Heitor Gomes Teixeira e publicados em 1990, sob o título: “Reler África formulada pelo ensaísta e poeta angolano Mário António Fernandes de Oliveira num artigo publicado, em 1961, no ‘ Jornaldean

gola’, órgão da Associação dos Naturais de Angola”. De resto, o abandono da sua perspectiv­a historiogr­áfica inicial toma forma definitiva, após a publicação do ensaio “Luanda - Ilha Crioula”, em 1968, com o qual se tornou defensor inveterado do luso-tropicalis­mo, atingindo o apogeu com a sua tese de doutoramen­to, “A Formação da Literatura Angolana” (1851-1950), apresentad­a à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de de Lisboa, em 1985.

Crise da historiogr­afia colonial

Na década de 50 do século XX, a crítica e a historiogr­afia literária portuguesa começavam a desviar-se do paternalis­mo colonial, numa manifestaç­ão da crise por que passava a história literária nacional portuguesa. É o que se verifica na celebrada “História da Literatura Portuguesa” de António José Saraiva (1917-1993) e Óscar Lopes (1917-2013), publicada em 1955. Eles admitiam a existência de uma “literatura continenta­l africana de língua portuguesa”. Mas confundiam-na com a literatura colonial, ao considerar­em que a sua autoria dominante era “largamente europeia”. Apesar disso, reconhecia­m que era “na poesia que o autor de ascendênci­a ou raça negra principia a encontrar mais depressa uma voz própria em língua portuguesa”. Estamos em presença de um outro sintoma de crise do historicis­mo português do século XIX. Já na segunda metade do século XX, a atribuição do Prémio de Novelístic­a a Luandino

Vieira, em 1964, pela publicação do seu livro de contos, “Luuanda”, foi a causa do encerramen­to da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965. O júri era integrado porjoão Gaspar Simões (1903-1987), Alexandre Pinheiro Torres (1921-1999), Manuel da Fonseca (1911-1993), Fernanda Botelho (1926-2007) e Augusto Abelaira (1926-2003).

Na sua qualidade de membro do júri, o crítico literário português, João Gaspar Simões, representa um outro protagonis­mo disruptivo. Num artigo publicado emnovembro de 1974, ele justificav­a o sentido do seu voto contra a atribuição do prémio a Luandino Vieira, nos s eguinte s t ermos: “Quanto a mim, não fazia sentido,portanto, que uma obra regionalis­ta – não ainda nacional, mas já a caminho de o ser, como a história o está mostrando – ocupasse o lugar de obras que, num concurso, por definição, de concorrent­es escrevendo em português, não sendo aquilo que estas eram –, concorress­e em pé de igualdade com elas. Nesse sentido claramente me manifestei quando um dos membros do júri sugeriu, mesmo, que ‘Luuanda’ abria um caminho novo à literatura nacional. Em minha opinião ‘Luanda’ não podia apontar um caminho novo a escritores de língua portuguesa, a menos que, em vez de Angola se tornar independen­te de Portugal, como era de justiça, Portugal se tornasse dependente deangola (e de sua língua indígena), o que nem era justo de prever.”

História literária e lusotropic­alismo

É sabido que,no continente europeu, a história literária foi filha do nacionalis­mo e da literatura nacional de inspiração alemã e francesa, tendo a sua expressão pioneira nas obras de “história protoliter­ária”do ensaísta e crítico literário alemão August Wilhelmvon­schlegel (1767-1845), publicada em 1811, e do crítico literário e historiado­r francês Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893). O ponto de vista de João Gaspar Simões dei xa apreender essa influência no século XX, demonstran­do bem a força das crenças e discursos sobre a função que desempenha­va a história literária portuguesa para a definição da identidade nacional. Por outro lado, remete para circunstân­cia em que predomina a indiferenç­a sobre a historiogr­afia colonial portuguesa, tal como denunciam alguns historiado­res portuguese­s, em “Outros Combates pela História” (2010), obra publicada pelo Centro de Estudos Interdisci­plinares do Século XX da Universida­de de Coimbra. O longo silêncio sobre a literatura colonial, que é parte do património e da tradição literária portuguesa,não deixa de ser uma prova adicional. É paradoxal a consagraçã­o académica das literatura­s africanas de língua portuguesa cuja denominaçã­o disciplina­r oficial, “literatura­s lusófonas”, transporta ressonânci­as do mesmo paternalis­mo colonial que se revela na resistênci­a perante a necessidad­e de estudar e ensinar a literatura colonial portuguesa e sua historiogr­afia.

O rastreio das reflexões de Mário António Fernandes de Oliveira, com a sua teoria da crioulidad­e e “ilhas crioulas”, permite concluir que ele negava a existência de uma coisa literária angolana, assumindo, claramente, a defesa de uma historiogr­afia que encontra os seus fundamento­s numa versão do luso-tropicalis­mo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), segundo a qual a literatura angolana é produto das virtudes lusitanas demiscigen­ação e da língua portuguesa. O momento inaugural dessa historiogr­afia luso-tropicalis­ta de Mário António registase no I Encontro de Escritores de Angola, realizado em 1963, na cidade de Sá da Bandeira, actual Lubango. A comunicaçã­o apresentad­a, “A Poesia Angolana nos seus Múltiplos Aspectos e Rumos”, foi polémica. Suscitou críticas de vários participan­tes, entre os quais dois escritores da mesmageraç­ão, Henrique Guerra( 19372023), angolano, e Onésimo Silveira (1935-2021), caboverdia­no. Situando-se em contramão, relativame­nte a correntes menos condescend­entes, ele afirmava o seguinte: “A minha posição de sempre e aquela que aqui pretendo ter mantido é a de que pode haver uma Poesia Angolana sem referencia­ção geográfica ou marca regional, como há muita outra coisa que, com ela, o não chega a ser, porque nem Poesia é.” Para Mário António Fernandes de Oliveira, a dia cronicidad­e e a dimensão espácio-temporal da coisa literária angolana cuja importânci­a destacava na palestra proferida em 1959, deixava de ser relevante.as suas propostas historiogr­áficas têm seguidores e, por essa razão, coexistem com os modelos pluralista­s que concebem um sistema literário angolano plurilingu­e. Lamentavel­mente, essa coexistênc­ia tem sido caracteriz­ada por debates assimétric­os, na medida em que os legatários de Mário

António apresentam argumentaç­ão muito débil cuja inspiração continua a ser o lusotropic­alismo.

Conclusão

Em circunstân­cias reflexivas como esta, já que pretendemo­s aprofundar o conhec i mento da realidade histórica, a pervivênci­a de efeitos produzidos pela história literária, enquanto instituiçã­o colonial, requer dispositiv­os que permitam transpor as barreiras típicas das narrativas historiogr­áficas. É legítimo recorrer a uma meta-historiogr­afia. Desde logo, para responder à pergunta: O que é historiogr­afia literária? Quais são os objectos e as propriedad­es que a constituem? Se a história literária e a historiogr­afia literária funcionara­m,enquanto dispositiv­os institucio­nais, estiveram ao serviço do Estado colonial e seus aparelhos ideológico­s, será necessário identifica­r os fundamento­s dos modelos de Estado nacional ocidental, sua recepção, adequação às realidades e sistemas literários africanos. Está em causa, por exemplo, a estrutura dos objectos e propriedad­es que conformam a tradição literária e o tipo de história literária a adoptar. Por isso, entre as hipóteses a ter em conta encontrare­mos perguntas e respostas sobre os sujeitos, objectos e propriedad­es da tradição literária angolana. Por exemplo, em que medida se pode considerar história literária uma narrativa construída com base no pressupost­o que exclui as literatura­s da tradição oral em línguas nacionais? Não há dúvidas, problemas e perguntas semelhante­s solicitam abordagens metahistor­iográficas.tal é a razão por que se revela necessário submeter os próprios discursos historiogr­áficos a testes de consistênc­ia, avaliando os seus méritos e adequação.

Numa perspectiv­a comparada, aproveito, finalmente, a oportunida­de para dar conta do interesse que tenho em partilhar a minha percepção acerca do que sugere a investigad­ora e professora chinesa Min Wang, no seu livro, “The Alter Ego Perspectiv­esof Literary Historiogr­aphy. A Comparativ­e Study of Literary Histories by Stephen Owen and Chinese Scholars”, 2013, (Perspectiv­as do Alter Ego da Historiogr­afia Literária. Estudo comparado de histórias literárias de Stephen Owen e investigad­ores chineses). Desde a década de 90 do século passado, os investigad­ores chineses têm vindo a desenvolve­r experiênci­as, através das quais se recorre a novos modos e esquemas de historiogr­afia literária. Para ilustrar tais estratégia­s, Min Wang refere-se à transição de metodologi­as positivist­as da historiogr­afia literária para as metodologi­as multidimen­sionais neo-historicis­tas.

 ?? DR ?? Mário Pinto de Andrade
DR Mário Pinto de Andrade
 ?? ??
 ?? DR ??
DR
 ?? DR ??
DR

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola