O lagarto Ghandi, a objectiva e a metafísica
Não é todos os dias
que nos avistamos com um lagarto, ou que um lagarto nos avista em flagrante câmara lenta, mas como a vida é a primeira bela-arte do encontro, isso não devia constituir para o bicho das patas gémeas espanto.
Enquanto errava por aí em busca de alimentos para o bucho da minha gulosa objectiva, vi um lagarto agarrado auma árvore como se fosse o único vivente no mundo.
Aquele lagarto agarrado à árvore frondosa, estava de bem com a vida dele, não padecia de nenhuma azia existencial, tinha achaque sequer.
Desde o ovo percebeu que é à-toalutar contra o destino que era apenas seu, daí que aceitou na boa a condição de lagartoser e vive feliz do seu jeito.
Fazia transbordar isso, era visível demais. Digase em nome de todas as passagens.seja lá dita a verdade, aquele réptil não tinha triviais e nem megalómanas preocupações.
(Vi)via uma lua de cada vez. O muito pouco lhe era um tempero quanto baste.
A sua visão limitada, o mundo circunscrito a si, a bolha em que se encontrava fazia-lhe perceber que de nada adianta criar ilusões, ser o que não se é, é uma maisvalia ser que parece ser, além do mais, quem não é existência não pode ser essência.
Aquele lagarto que já lhe considero como um companheiro fiel, um amigo de estimar a acção,desconfio que conviveu com o Sartre ou alguém próximo a ele.
A árvore em que o lagarto se agarrara, parecia ser (tudo para) ele.– Ser parte inata e intacta dele.
O bicho tinha menos olho, tinha menos jarda na barriga.
Não ambicionava o que não lhe bastasse, o que não chegasse até ele.
Comiacom prazer moscas, pequenos mamíferosiguarias, ovos, frutas, folhas que a natureza lhe cedia.
Precisava apenas de mínimos olímpicos para rastejar-se e enfrentar o caos.
O lagarto veio ao mundo com propósitos pacifistas, era Ghandi demais para o reino onde a cadeia que guardava os alimentos mais desejados era um round 6 (squid game).
Não se chega ao topo sem corrimento sanguíneo.sangrar para singrar – era a grande (pre)missa da vez.
A cultura da serenidade era-lhe característica como a escama que lhe vestia o corpo.percebeu prematuramente que o absoluto querer, querer mais pode ser perigosíssimo, um agente neuro e tóxico. Por isso preferiu não ter um ascendente sobre os outros, nem sobre si, não alienar ninguém, nem a si mesmo.
Daí que não era refém da pirâmide das necessidades de nenhum Maslow, tampouco se preocupava com teorias demolunáticas e gráficas do gajo do Malthus.
A necessidade além da fisiologia é uma amarra que ata os homens à condição. O meu amigo lagarto vivia como pôde e como pôde viveu.
Não se deixou enganar pelo tempo dos homens, além do mais, o tempo é mesmo para os homens. Vivia exercitando um carpe
diem intenso. Amadorava o modo zen. O modo zen era para si uma fonte inesgotável de prazer.
Na verdade, estava diante de um lagarto hedonista.
A sua ontologia não fica a dever nada aos homens, outros viventes como ele.
O meu amigo lagarto deixou-se pousar na minha lente, aliás, estava nem aí para mim, para a minha altivez, se usasse o seu retrato como exposição e ascensão mediática, fonte inesgotável de rendimento. Isso era uma maka somente minha, não era motivo para activar o modo preocupação. Tinha mais que viver, mais que fazer. Ainda que isso significasse deixar-se petrificar naquela árvore frondosa.
Eu é quem me massacrava em busca de um ângulo melhor para fazer o melhor retrato de sempre do lagarto Gandhi. Movi cordilheiras, dialoguei com rios profundos, pus a pata em terrenos quentes, venci labaredas para ver o bicho a transformar-se em vida digna na minha objectiva. Quis confirmar o belo registo foto e gráfico, vasculhei a máquina de cima a baixo, revistei vezes incontáveis, o Ghandi não mais estava lá, nunca esteve, parecia um vulto papão, uma virose que invadira a objectiva da minha máquina fotográfica, voltei a reparar minuciosamente, usei os meus olhos-lupa e o que vi deixou-me de queixo caído, muito cabisbaixo, o que registara com muito esforço e dedicação, durante toda uma vida, transformouse num aparar das unhas num mar ruinoso, era pior que demasiada expectativa versus pouca e fugidia realidade – era afinal uma árvore gigantesca e frondosa a dar asombra da sua graça.
Estava voltada para si mesma, era introspectiva demais, centro da sua própria gravidade,as suas raízes bem assentes, bem firmes na terra deixava marcas, rachas e outras escoriações na face da terra.
Aquela árvore transfigurada em retrato ou o retrato transfigurado em árvore, petrificara-se para ser ela mesma, não quis ser mais uma no meio da multidão siamesa, fingiu-se de morta, de coisa inerte para não lhe importunarem a vida.
Conseguiu finalmente essa proeza para seu próprio gáudio, e tristeza sem fim para mim. Riu-se de mim, deu várias gargalhadas, mas agarrei-me firmemente às estribeiras para não ir com ela em vias principais, secundárias e terciárias de facto.
Não foi desta que o expectável se tornou realidade. Oxalá no horizonte que vem ali…