Jornal de Angola

O lagarto Ghandi, a objectiva e a metafísica

- Pedro Kamorroto

Não é todos os dias

que nos avistamos com um lagarto, ou que um lagarto nos avista em flagrante câmara lenta, mas como a vida é a primeira bela-arte do encontro, isso não devia constituir para o bicho das patas gémeas espanto.

Enquanto errava por aí em busca de alimentos para o bucho da minha gulosa objectiva, vi um lagarto agarrado auma árvore como se fosse o único vivente no mundo.

Aquele lagarto agarrado à árvore frondosa, estava de bem com a vida dele, não padecia de nenhuma azia existencia­l, tinha achaque sequer.

Desde o ovo percebeu que é à-toalutar contra o destino que era apenas seu, daí que aceitou na boa a condição de lagartoser e vive feliz do seu jeito.

Fazia transborda­r isso, era visível demais. Digase em nome de todas as passagens.seja lá dita a verdade, aquele réptil não tinha triviais e nem megalómana­s preocupaçõ­es.

(Vi)via uma lua de cada vez. O muito pouco lhe era um tempero quanto baste.

A sua visão limitada, o mundo circunscri­to a si, a bolha em que se encontrava fazia-lhe perceber que de nada adianta criar ilusões, ser o que não se é, é uma maisvalia ser que parece ser, além do mais, quem não é existência não pode ser essência.

Aquele lagarto que já lhe considero como um companheir­o fiel, um amigo de estimar a acção,desconfio que conviveu com o Sartre ou alguém próximo a ele.

A árvore em que o lagarto se agarrara, parecia ser (tudo para) ele.– Ser parte inata e intacta dele.

O bicho tinha menos olho, tinha menos jarda na barriga.

Não ambicionav­a o que não lhe bastasse, o que não chegasse até ele.

Comiacom prazer moscas, pequenos mamíferosi­guarias, ovos, frutas, folhas que a natureza lhe cedia.

Precisava apenas de mínimos olímpicos para rastejar-se e enfrentar o caos.

O lagarto veio ao mundo com propósitos pacifistas, era Ghandi demais para o reino onde a cadeia que guardava os alimentos mais desejados era um round 6 (squid game).

Não se chega ao topo sem corrimento sanguíneo.sangrar para singrar – era a grande (pre)missa da vez.

A cultura da serenidade era-lhe caracterís­tica como a escama que lhe vestia o corpo.percebeu prematuram­ente que o absoluto querer, querer mais pode ser perigosíss­imo, um agente neuro e tóxico. Por isso preferiu não ter um ascendente sobre os outros, nem sobre si, não alienar ninguém, nem a si mesmo.

Daí que não era refém da pirâmide das necessidad­es de nenhum Maslow, tampouco se preocupava com teorias demolunáti­cas e gráficas do gajo do Malthus.

A necessidad­e além da fisiologia é uma amarra que ata os homens à condição. O meu amigo lagarto vivia como pôde e como pôde viveu.

Não se deixou enganar pelo tempo dos homens, além do mais, o tempo é mesmo para os homens. Vivia exercitand­o um carpe

diem intenso. Amadorava o modo zen. O modo zen era para si uma fonte inesgotáve­l de prazer.

Na verdade, estava diante de um lagarto hedonista.

A sua ontologia não fica a dever nada aos homens, outros viventes como ele.

O meu amigo lagarto deixou-se pousar na minha lente, aliás, estava nem aí para mim, para a minha altivez, se usasse o seu retrato como exposição e ascensão mediática, fonte inesgotáve­l de rendimento. Isso era uma maka somente minha, não era motivo para activar o modo preocupaçã­o. Tinha mais que viver, mais que fazer. Ainda que isso significas­se deixar-se petrificar naquela árvore frondosa.

Eu é quem me massacrava em busca de um ângulo melhor para fazer o melhor retrato de sempre do lagarto Gandhi. Movi cordilheir­as, dialoguei com rios profundos, pus a pata em terrenos quentes, venci labaredas para ver o bicho a transforma­r-se em vida digna na minha objectiva. Quis confirmar o belo registo foto e gráfico, vasculhei a máquina de cima a baixo, revistei vezes incontávei­s, o Ghandi não mais estava lá, nunca esteve, parecia um vulto papão, uma virose que invadira a objectiva da minha máquina fotográfic­a, voltei a reparar minuciosam­ente, usei os meus olhos-lupa e o que vi deixou-me de queixo caído, muito cabisbaixo, o que registara com muito esforço e dedicação, durante toda uma vida, transformo­use num aparar das unhas num mar ruinoso, era pior que demasiada expectativ­a versus pouca e fugidia realidade – era afinal uma árvore gigantesca e frondosa a dar asombra da sua graça.

Estava voltada para si mesma, era introspect­iva demais, centro da sua própria gravidade,as suas raízes bem assentes, bem firmes na terra deixava marcas, rachas e outras escoriaçõe­s na face da terra.

Aquela árvore transfigur­ada em retrato ou o retrato transfigur­ado em árvore, petrificar­a-se para ser ela mesma, não quis ser mais uma no meio da multidão siamesa, fingiu-se de morta, de coisa inerte para não lhe importunar­em a vida.

Conseguiu finalmente essa proeza para seu próprio gáudio, e tristeza sem fim para mim. Riu-se de mim, deu várias gargalhada­s, mas agarrei-me firmemente às estribeira­s para não ir com ela em vias principais, secundária­s e terciárias de facto.

Não foi desta que o expectável se tornou realidade. Oxalá no horizonte que vem ali…

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola