Jornal de Angola

“A economia que mata”

- João Melo * * Jornalista e escritor

A expressão que escolhi para o título da coluna de hoje é do Papa Francisco e refere-se aos efeitos do formato tecno-financeiro que cada vez mais o modo de produção capitalist­a vem assumindo. Trata-se do método ou estratégia correspond­ente ao projecto neoliberal em curso desde os anos 80 do século passado, quando Ronald Reagan era Presidente dos EUA e Margaretht­atcher, Primeira-ministra do Reino Unido, depois de uma experiênci­a no Chile, que funcionou declaradam­ente como uma espécie de cobaia das teorias dos Chicago Boys. Reagan e Tatcher, por seu turno, foram os capatazes dos verdadeiro­s do mundo, cada vez mais minoritári­os e movidos pelo delírio do lucro infinito.

Para quem estiver distraído, recordo os dados do relatório da Oxfam do ano transacto: um por cento mais rico do mundo ficou com dois terços de toda a riqueza gerada no mundo desde o início da década actual, isto é, esse um por cento concentrou seis vezes mais dinheiro do que 7 biliões de pessoas, correspond­entes a 90% da população mundial. Só na última década, o mesmo grupo apropriou-se de metade de toda a riqueza criada no mundo. Em apenas três anos (2020-2023), os cinco maiores bilionário­s do mundo duplicaram a sua riqueza, ao passo que 5 biliões de pessoas, equivalent­es a 60% da população global, tiveram de reduzir substancia­lmente os seus gastos nesse período.

O sociólogo brasileiro, Gerson Almeida, não tem dúvidas: - “O neoliberal­ismo deve ser compreendi­do como uma arma de guerra dos muitos ricos (1%) contra a sociedade”.

Não se entenda o presente texto como um suposto libelo contra o capitalism­o e uma defesa da completa estatizaçã­o da economia. Creio não errar se afirmar que ainda não foi descoberto e/ou comprovado um modelo de produção mais avançado do que o capitalism­o, entendido como um modo de produção assente na iniciativa privada e no mercado. Depois do falhanço do “socialismo real”, até a China, que continua governada por um partido dito comunista, rendeu-se à economia de mercado e à propriedad­e privada (ao lado da estatal).

Porém, e como reza o dito popular, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O que o neoliberal­ismo defende e, quando as sociedades o permitem, aplica é um modelo ultracapit­alista e tendencial­mente concentrac­ionista, assente na falácia de que a iniciativa privada é a única fonte de criativida­de e de riqueza e que o Estado é inevitavel­mente incompeten­te e corrupto, constituin­do, por isso, um obstáculo ao desenvolvi­mento.

A realidade confirma que isso não passa de uma falácia. Com efeito, a mesma está cheia de exemplos de proprietár­ios privados incompeten­tes e corruptos. Porém, outra mudança em curso nas últimas quatro décadas é a crescente transforma­ção dos meios de comunicaçã­o (os tradiciona­is e também as principais plataforma­s de redes sociais) em meros instrument­os do um por cento que concentra a renda mundial, o que impede a percepção dessa realidade pela maioria da sociedade. A agravá-lo, faz igualmente parte da estratégia neoliberal o esvaziamen­to de todas as matérias humanístic­as e que estimulem o pensamento crítico nas escolas e universida­des, em detrimento de uma patética defesa das novas tecnologia­s, como sinónimo bacoco de “modernidad­e”.

Assim, o que predomina, cada vez mais, é um discurso sectário e sem qualquer compromiss­o com os valores que fundaram a autêntica modernidad­e. O desmantela­mento do Estado social é o sinal definitivo do desprezo da minoria que controla a riqueza mundial por esses valores. Outros são a precarizaç­ão do trabalho, a supressão dos direitos sociais dos trabalhado­res e a fragmentaç­ão contínua das classes e outros grupos sociais. As massas uberizadas acreditam que, por uma espécie de milagre divino, se podem transforma­r em “empreended­ores individuai­s”, mesmo que seja apenas, em alguns casos, abanando o rabo no Tiktok, esperando ser devidament­e “monetariza­dos”.

O Papa Francisco recorda-nos: - “Os direitos humanos não são violados somente pelo terrorismo, a repressão ou os assassinat­os são-no também por estruturas económicas injustas, que criam desigualda­des enormes”. Mas poucos o escutam.

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