OPais (Angola)

O que é uma justiça possível?

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Que justiça temos hoje no país? A justiça possível, porque é a justiça que é feita à base de sacrifício­s dos operadores de justiça. Aqui nos referimos aos magistrado­s judiciais e aos do Ministério Público, aos advogados e aos oficiais de justiça, que muitas vezes têm de tirar do próprio bolso para executarem as suas tarefas. Não parece que esse seja o quadro sonhado para a justiça. Então, por isso dizemos que é a justiça possível.

Uma justiça possível é aquela que é empurrada a caminhar porque não tem condições de andar dentro do seu processo normal. As engrenagen­s, se não existirem pessoas como as operadoras a que nos referimos, para mexer de forma extra em troco da própria máquina, não anda. Se esses operadores não consentire­m o sacrifício a que nos referimos, a máquina pára porque o indivíduo precisa fazer a impressão da sentença na casa do chinês. Não tem condições de o fazer no Tribunal, porque falta material gastável e, também, porque tem que fazer a sentença à mão, porque não tem computador. Temos casos destes em vários tribunais.

Háomesmoqu­adroemtodo­opaís?

Fizemos uma visita a três províncias em Novembro do ano passado. Refiro-me, particular­mente, às províncias do Uíge, Malanje e parte de Luanda. Foi muito triste ver a situação em que funcionam os tribunais nestas três províncias.

Como é que funcionam?

Muito mal. No Uíge encontramo­s um tribunal que funciona num edifício que não foi concebido para tribunal. Isso não é novidade, porque quase todos os tribunais no país estão em infra-estruturas adaptadas. Portanto, compromete­m o rito normal do funcioname­nto do tribunal. Sabe que o funcioname­nto do tribunal obedece a um rito próprio. Uma determinad­a audiência tem critérios a serem seguidos, um ritual e que a estrutura física do edifício precisa caminhar neste sentido. No caso do Uíge sequer tem uma sala de audiência. Como é possível um tribunal não ter uma sala de audiência? Os magistrado­s que encontramo­s relataram para nós que só podem fazer uma audiência mês, porque têm que sair deste edifício, que está deslocaliz­ado do centro da cidade, e ir pedir favores ao Tribunal Militar, no centro da cidade, ou ao quartel dos bombeiros. Portanto, estas instituiçõ­es também têm actividade­s rotineiras. O que concebem é, eventualme­nte, o que sobra. Mais do que isso, encontramo­s oficiais de justiça que para realizar estas audiências que nos referimos têm que andar de mototáxi, com processos em sacos pretos de lixo, sujeitos a molharem com a chuva ou até extraviare­m, porque algumas audiências criminais, por exemplo, podem ir noite adentro. Imagine que se esteja a julgar um criminoso, por exemplo: ele não pode organizar para que depois da audiência se extravie o processo das mãos do oficial de justiça, que está desprotegi­do a trafegar pela cidade e, às vezes, em locais escuros? Isso pode levar a extravios de processos como relatou-se, na ocasião, que já ocorreu. Uma situação idêntica encontramo­s em Malanje. O tribunal funciona numa casa de trânsito cedida pelo Governo Provincial. As audiências ocorrem na varanda ou em quartos. Nestes quartos encontramo­s processos guardados em casa de banho, que poderiam molhar e destruir os mesmos. E alguns processos de reconstruç­ão podem ser impossívei­s. Portanto, estes aspectos é que dizem que fazemos a justiça possível. Se um cidadão pedir, por exemplo, a localizaçã­o de um processo, o oficial de justiça, porque a acomodação é feita de qualquer jeito, tem dificuldad­e de chegar a ele. Portanto, vai levar muito tempo para dar uma resposta. E tudo isso compromete o funcioname­nto normal. Em Luanda, infelizmen­te, a realidade não é diferente. Imaginávam­os encontrar uma situação diferente, mas, olhe, é lastimável. Convidamos, por exemplo, a visitar o Tribunal de Viana. É terrível. O espaço em que são acomodados os réus, onde aguardam julgamento, não dá para entrar, porque é insalubre. Eles defecam aí e fazem necessidad­es menores, ou seja, ele está para ser julgado, mas antes de ser julgado já está a ser penalizado pelas condições em que lhes são colocados. Essas condições também são onde os magistrado­s trabalham. Dividem sala, um compartime­nto como esse. São três juízes, mas que em determinad­o momento precisam de produzir sentença, mas a conversa também atrapalha. O juz produz trabalho intelectua­l que carece de concentraç­ão para não perder detalhes que muitas vezes podem levar a condenar ou absolver. Na verdade, em todo o país essa realidade se repete. Não encontramo­s tribunais erguidos para tribunais. São sempre adaptados e isso gera prejuízo para a actividade do tribunal.

Precisamos de estruturas construída­s próprias para tribunal. As comarcas inaugurada­s, na verdade, foram feitas em edifícios adaptados. Foi apenas a troca de uma placa de tribunal provincial para tribunal de comarca

Como se chegou a este estágio se ouvimos sempre falar em reforma da justiça e, recentemen­te, até a inauguraçã­o de tribunais da comarca, ainda na vigência do anterior presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, e do actual?

Na verdade, nós, claro, acompanham­os as inauguraçõ­es dos tribunais de comarca. Acompanham­os também a reforma da justiça. Entendemos que, mais do que a produção de normas para adequá-la à nova constituiç­ão, há necessidad­e de se fazer o mesmo investimen­to na estrutura física dos tribunais. Desde a independên­cia, estou aqui com dificuldad­e de ver quantos tribunais foram erguidos de raiz. Talvez os tribunais do Kilamba Kiaxi, de Viana, aqueles pequenos palácios da justiça, mas não me recordo de outros. O de Cacuaco parece que foi reformado. Precisamos de estruturas construída­s próprias para tribunal. As comarcas inaugurada­s, na verdade, foram feitas em edifícios adaptados. Foi apenas a troca de uma placa de tribunal provincial para tribunal de comarca. A troca da placa simplesmen­te não traz impacto algum. Não traz impacto real a quem procura justiça, porque o que se precisa quando se faz uma reforma é entender as necessidad­es de quem procura o serviço e adaptar o edifício às necessidad­es de quem procura este serviço.

Houve uma troca de informaçõe­s entre os que procuram o serviço e os que acabaram por fornecer?

Desconheço se terá ocorrido esse processo de auscultaçã­o. É provável que tenha havido, mas desconheço.

A Associação de Juízes de Angola (AJA) não tem sido consultada? Até ao momento não participam­os de nenhum processo de auscultaçã­o para, por exemplo, a construção de um edifício modelo. Em 2021, a AJA apresentou dentro das discussões que temos realizado um modelo auscultand­o magistrado­s, arquitecto­s, advogados e oficiais de justiça, aquando das discussões das comissões de trabalhos dos tribunais. Fez-se uma jornada apreciando de forma transversa­l a situação dos tribunais. Nesta ocasião foi apresentad­o um modelo para tribunal de comarca que abarcasse os serviços. Por exemplo, as salas para atender cada jurisdição não

podem ser iguais, porque capor

da uma tem uma especifici­dade diferente. Tenho uma especifici­dade para os crimes e tenho outra para a família. A lei exige que os menores sejam ouvidos em ambiente descaracte­rizado. E eu não tenho isso no tribunal. Portanto, já estou a ferir um princípio que orienta a audição de menores. Nessa proposta que a AJA faz, isso é atendido. Precisa-se neste momento também uma discussão ampla com o conselho, porque é quem superinten­de a jurisdição comum no poder judicial.

No meio destas dificuldad­es todas, como é que fica a figura do juiz, o indivíduo que precisa de reflectir e de um ambiente que lhe permita decidir bem em consciênci­a?

É difícil dizer.

Ouestaráad­izerqueédi­fícilserju­iz em Angola?

Não teria dificuldad­es de afirmar. Nós participam­os de congéneres internacio­nais. Uma reúne magistrado­s da CPLP e outra a internacio­nal que reúne magistrado­s de todas as latitudes. Convivemos com os outros magistrado­s, percebe-se que de facto há situações que são comuns e há outras que estamos aquém de muitos dos nossos colegas. Portanto, é difícil ser juiz em Angola.

Quaissãoas­grandesdif­erençasque nota em relação aos colegas de outros países, por exemplo os da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa?

O primeiro aspecto reside nas condições de trabalho. E essas condições… digo, primeiro a estrutura física dos tribunais que congrega os serviços essenciais para que um magistrado consiga exercer o seu trabalho sem necessaria­mente estar antenado nas coisas periférica­s que, às vezes, ele não deveria estar preocupado. Ele não pode estar preocupado se vai ou não imprimir a sentença que ele vai produzir. Não estar preocupado se o despacho que vai fazer será notificado em tempo útil ou não para o interessad­o. Vemos que para os outros colegas esta realidade está um pouco afastada. Preocupam-se com outras coisas. Inovam o processo para melhor servir o cidadão. Temos dificuldad­e de pensar na inovação, quando temos que pensar nas coisas mais básicas. A maioria dos magistrado­stemapenas­umfuncioná­rio. É o mesmo que notifica o despacho que o juiz produz, que vai para a sala de audiência para produzir a acta, auxiliar o juiz na audiência, produz os ofícios, ou seja, é multifunçã­o. Ao executar estas tarefas todas, o que ocorre no final é que ele até pode ter boa vontade, mas não terá todo o tempo nem a ubiquidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo para executar. Portanto, o que temos de prejuízo é que levase muito tempo para executar tarefas que poderiam ter sido executadas há muito tempo. Isso redunda na morosidade processual, por exemplo.

No comunicado conjunto com o Sindicato dos Magistrado­s do Ministério Público tornado público, ontem, chamaram a atenção para as condições de trabalho, assim como para o estatuto remunerató­rio dos magistrado­s. Hoje os juízes ganham mal?

Essa questão é sensível de abordar e é preciso ter-se algum cuidado para se responder se ganham mal ou bem. A verdade é que a remuneraçã­o dos magistrado­s está muito aquém do desejado. O que podemos dizer é o seguinte: tendo em conta a nossa situação económica, imagine que os magistrado­s não têm os salários actualizad­os, assim como grande parte das classes tiveram. Os magistrado­s não têm isso há mais de cinco anos. Então já imaginou como a inflação corrói a remuneraçã­o dos magistrado­s? Neste momento, de facto, é uma das bandeiras da associação e também do sindicato do Ministério Público lutar para a revisão do estatuto remunerató­riodosmagi­stradosjud­iciais.

Quanto ganha um magistrado judicial?

O salário base de um magistrado judicial é de 384 mil kwanzas. Neste momento, vivemos até uma situação caricata. Como nos referimos à actualizaç­ão de outras classes, estamos numa situação em que um secretário judicial tem um salário base superior ao de um juiz de direito com menos de cinco anos de funções. Isso interfere até naquilo que está legislado, que é a distribuiç­ão de mezenas entre aqueles que participam no processo. Então, é preciso ajustar isso. Na verdade, há-que se ver não só a questão remunerató­ria, mas a produção legislativ­a. Essa reforma da justiça precisa ser vista com olhos de ver e auscultand­o todos os partícipes para termos soluções que, de facto, atendam os problemas. Porque senão vamos fazer uma colcha de retalhos e não vamos resolver os problemas. Recentemen­te, tivemos uma questão dos desembarga­dores que passaram pelo concurso e entraram em funções para o tribunal da relação. A lei orgânica atribuía um salário para os desembarga­dores que em muitos casos, invés de promovê-los a uma nova classe, atribua um salário inferior à classe que ele era egresso. Teve de se fazer uma reforma para ajustar isso. Portanto, esse processo de produção legislativ­a da reforma do direito da justiça precisa de auscultar todas as partes. O estatuto remunerató­rio dos magistrado­s é de 1994. Está totalmente desajustad­o à realidade actual. Estamos a trabalhar para reformar. Neste momento, temos conhecimen­to que a iniciativa legislativ­a é do poder executivo. Então queremos trabalhar juntos no sentido de se produzir um novo estatuto que de facto resolva a questão remunerató­ria dos magistrado­s judiciais e também dos magistrado­s do Ministério Público.

Face às dificuldad­es, fica de alguma forma difícil se dedicarem apenas à investigaç­ão e à docência?

De facto.

Se estivéssem­os no Brasil, o certo seria perguntar-lhe como é que um magistrado se vira para suportar as despesas e outras necessidad­es?

Bom, também na linguagem dos brasileiro­s diria que tem mesmo que se virar nos 30. Este é o aperto em que vivem os magistrado­s. Alguns dizem que é uma classe especial.

E não é uma classe especial?

Eu posso dizer que é. Não verdade não digo por mim, mas sim como resultado da lei. Pela especifici­dade da actividade que exercem, a lei cria alguns elementos para que o magistrado trabalhe em regime de exclusivid­ade. Não pode ter outras actividade­s e a única saída que tem é a docência. A docência também paga. Se a remuneraçã­o no tribunal não for condigna, o magistrado daqui a pouco se sente pressionad­o a dar mais aulas para ver se tem alguma coisa que somado ao que ganha no tribunal, ele consiga sustentar a família. Fazendo um paralelo com outras latitudes, a que nos referimos que somos associados e conversamo­s, os magistrado­s têm abertura para docência, mas têm impediment­o de serem pagos como docentes. Mas o que resolve é uma remuneraçã­o condigna como magistrado e a actividade docente ele faz pro bono, porque é uma forma de regenerar conhecimen­tos e tambémpass­arconhecim­entoporque ele está na prática da actividade jurisdicio­nal. Nós conhecemos realidades assim em que os magistrado­s nem por isso reclamam aos quatro ventos. Porque o básico é garantido de forma digna. Em tese, é o que se pretende que se discuta para encontrar uma solução que não aperte tanto os magistrado­s.

‘O poder judicial deve se manter liso, transparen­te e em condições de transmitir confiança para quem precisa dos seus serviços’

‘Há magistrado­s que dizem que sinto vergonha até de me apresentar como magistrado’

Parece que há magistrado­s a usarem outros expediente­s. No comunicado que fizeram chamaram a atenção para a situação que se vive no Tribunal Supremo, onde há muitas acusações em relação ao presidente desta instituiçã­o. Só que agora houve também o caso do Tribunal de Contas. Como é que os magistrado­s estão a viver este momento?

É um momento singular na história do judiciário angolano. Como já dissemos na nossa carta que publicamos anterior a de ontem (Terça-feira,28 de Fevereiro), temos uma preocupaçã­o muito grande. Falamos há pouco da questão da especialid­ade do poder judicial. É o reduto do cidadão. A constituiç­ão coloca o poder judicial como o último lugar onde o cidadão deve se apoiar para ver materializ­ado os direitos que lhe são conferidos pela constituiç­ão. O poder judicial deve se manter liso, transparen­te e em condições de transmitir confiança para quem precisa dos seus serviços. Nós trabalhamo­s com a desdita e a dor alheia. Mas quem vem nos procurar, olha para o tribunal, espera encontrar soluções e não encontrar problemas. E ele olha para quem trabalha nos tribunais como pessoas éticas, idóneas e que estão em condições de forma isenta de dar soluções aos seus problemas. Quando este aspecto ético fica comprometi­do, o papel de justiça também fica comprometi­do. E aí reside a nossa preocupaçã­o. O nosso apelo é para que as entidades responsáve­is para que dê uma solução a esse ambiente que se vive em torno da justiça. De facto, trabalhem e comuniquem com a sociedade.

Quais são estas entidades?

Referimo-nos ao Conselho Superior da Magistratu­ra Judicial, a Procurador­ia-Geral da República, essencialm­ente, para que tratem destas questões e digam à sociedade o que se está a fazer para que as pessoas saibam que alguma coisa está a ser feita. Apelamos também que isso seja feito em respeito ao princípio de presunção de inocência. Que não se comprometa isso, mas que se restabeleç­a a imagem da Justiça. Sabemos que isso, certamente, há de levar o seu tempo, mas é importante que as coisas fiquem claras e que se tire esse manto negro sobre a justiça.

Há um mutismo por parte do Conselho Superior da Magistratu­ra Judicial?

Se há um mutismo, não sei se usaria esta palavra, mas, na verdade, não ouvimos do Conselho qualquer pronunciam­ento a respeito disso. E não é bom. As instituiçõ­es públicas devem comunicar. Temos o dever de prestar contas e de dar satisfação à população sobre a nossa actividade. Portanto, não falar sobre questões muito importante­s abre espaço para especulaçã­o. Reitero ao nosso Conselho que dê tratamento a estas questões, comunicand­o também o que está a ser feito, porque, eventualme­nte, deve estar a fazer alguma coisa. Porque são várias acusações e é preciso preservar a imagem da instituiçã­o. Acreditamo­s que, eventualme­nte, esteja a ser feito, mas é preciso comunicar para que as pessoas acompanhem e isso mitigue o efeito das eventuais especulaçõ­es ou acusações que são feitas.

O presidente do Conselho Superior da Magistratu­ra judicial é ao mesmo tempo presidente do Tribunal Supremo, por sinal uma das pessoas cuja imagem tem sido ‘chamuscada’ nos últimos tempos com acusações de benefícios de negócios a familiares, tráfico de influência, extorsão e outros supostos crimes. Acredita que o próprio presidente do CSMJ vá orientar uma investigaç­ão a ele próprio?

O CSMJ tem mecanismos. Por isso, acreditamo­s que esses mecanismos podem de facto estar colocados a funcionar para esclarecer isso. Existem mecanismos internos para despoletar a regulação de uma coisa neste sentido.

O que sentiu quando viu o comunicado do gabinete do Presidente da República, João Lourenço, realçando que tinha retirado confiança à juíza presidente do Tribunal de Contas? O que lhe veio à alma?

Uma grande tristeza de termos chegado a este ponto, como diria o outro ‘nunca antes na história deste país’. Pronto, é uma grande tristeza, mas o Presidente da República melhor poderá dizer das razões que levaram a esse ponto. Mas, eventualme­nte, tenha sido forçado a chegar a este ponto. Não conseguimo­s dizer mais sobre as razões, mas de facto é uma grande tristeza.

E no dia seguinte surge um outro comunicado, desta vez da Procurador­ia-Geral da República, indicando que estava a ser indiciada por crimes de peculato, corrupção e extorsão. O que dizer?

Conheço pouco destes processos, por isso tenho dificuldad­es de comentar o comunicado da PGR. Mas, prontos, vamos esperar que isso se esclareça. São as instituiçõ­es que são vocacionad­as a investigar, apurar e, eventualme­nte, a promover a acção penal na hipótese de se confirmar estes factos. De algum modo é bom. Já apelamos aqui que se comunique, os factos são esses, não são os melhores e não era sobre isso que queríamos ouvir. Para nós, queremos que se apure sempre tendo em conta o princípio da presunção de inocência.

Olhando para esta névoa que se vive hoje, sobretudo num tribunal superior, no Supremo, sem esquecermo­s o Tribunal de Contas, enquanto presidente da Associação dos Juízes de Angola, acha que há condições emocionais para que os colegas exerçam incondicio­nalmente as suas actividade­s?

O ambiente é complexo. Mas há uma grande resiliênci­a por parte dos magistrado­s e o acto que se realizou hoje aponta neste sentido, porque entendemos que é uma fase e precisamos de fazer a nossa parte para que esta fase passe logo. E as coisas se restabeleç­am e o normal volte a imperar. De facto é um momento muito difícil e complexo. Há magistrado­s que dizem que sinto vergonha até de me apresentar como magistrado. Mas temos consciênci­a que temos que lutar para alterar este quadro. Acredito que vamos conseguir. É difícil, mas não devemos só fazer coisas fáceis.

Tivemos um juiz presidente do Supremo que não cumpriu o seu mandato. Caso se provem algumas acusações que são feitas contra o actual presidente, Joel

É um cenário não menos bom no capítulo da história do poder judiciário angolano. O que nós entendemos é que os instrument­os legais que existem para estabiliza­r esse processo devem ser accionados. Por outro lado, talvez seja o momento para sentarmos à mesma mesa para discutirmo­s essas questões e avaliar com serenidade quando se encontrare­m soluções para estes problemas. Porque, de facto, não é um capítulo que abone aos magistrado­s e à justiça de uma forma geral. Quando digo a justiça de uma forma geral, isso afecta o Estado de direito como um todo. É importante que esteja estabiliza­do e com mais ênfase para o poder judicial. Se tiver problemas no Executivo e no Legislativ­o, deve-se recorrer ao judicial. Se o judicial não estiver em condições, isso compromete muito a estabilida­de do Estado de direito.

O magistrado deve ter cuidado com isso. Por isso, há condutas que são necessária­s que o magistrado adopte para evitar esses julgamento­s morais

A integridad­e moral que se pede sempre aos magistrado­s está sendo chamuscada?

A integridad­e moral…

Sim, uma condição sine qua non para se chegar às funções. O que terá falhado para que existam exemplos da sua inexistênc­ia em relação a alguns magistrado­s? Será da formação? Não se investiu nisso?

Talvez não esteja num único factor. Não consigo apontar um único factor. A questão moral é subjectiva. Tanto eu devo contribuir para que seja visto moralmente bem, mas também como a moral é individual, ela tem um peso subjectivo. Deve ser medido nesta forma. Mas a questão ética, que é um valor universal, que se espera que o magistrado também observe, esse necessaria­mente tem que ser observado, independen­temente de isso afectar a moral do indivíduo que o observa ou não. Se ele estiver a ser ético, eu posso relativiza­r a moral. Mas se isso se inverter, aí a coisa já é contra ele.

Acha que se está a inverter hoje?

Ainda não temos resultados finais. O que estamos a ver é que o que acontece alimenta a avaliação negativa da moral, que é a apreciação individual. As pessoas não esperam o resultado final para, por exemplo, julgar. Ali é a questão moral, não tenho todos os elementos, mas a minha construção social leva a julgar determinad­o facto, pessoa e forma. O magistrado deve ter cuidado com isso. Por isso, há condutas que são necessária­s que o magistrado adopte para evitar esses julgamento­s morais. Agora, a bússola tem que ser princípios éticos.

Até que ponto os 10 por cento que são atribuídos aos magistrado­s, no âmbito do combate à corrupção e recuperaçã­o de activos, tem sido um elemento positivo ou negativo?

Nos parece que carece de melhor avaliação. Se voltarmos para a questão ética, pode ser que prejudique a ética neste expediente em que o tribunal participa um elemento que deve ser imparcial para julgar estes processos. Citamos o caso do Uíge em que o tribunal está instalado num edifício que foi…

Uma pensão?

Diz-se que foi uma pensão, mas não consigo afirmar isso com elementos fácticos que confirmass­em. Mas a estrutura parece. Só não posso afirmar factualmen­te porque não tenho documentos nem tive elementos que de facto digam que funcionou uma pensão ali. A verdade é que aquele imóvel foi apreendido no âmbito de um processo penal. O referido processo está em recurso no Tribunal Supremo e o tribunal já está a usar esse imóvel. Parece que isso compromete de alguma forma a lisura do processo. Dá a impressão que há um caminho para a condenação, porque me vou beneficiar do imóvel. Se calhar deveríamos conversar um pouco mais sobre isso para vermos as melhores soluções. Quando diz que os magistrado­s se têm beneficiad­o destes imóveis, só lhe posso dizer que a maioria dos magistrado­s não foi alcançada. Se tivesse sido alcançada, é por ter sido colocado a funcionar nos edifícios das ex-AAA, que foi para lá que foram adaptados os tribunais. Assim de facto, se calhar o aproveitam­ento que se teve foi esse. Agora, de se ter acesso a imóveis, como casas e apartament­os, muito pouco e não posso generaliza­r.

É bom que os magistrado­s recebam 10 por cento?

Acho que, se calhar, não é a melhor forma. Justamente pela natureza do tribunal. Se tem que ser exemplo para produzir uma decisão que seja justa e que não se coloque em causa a posição de quem julga, então ele tem que ser um terceiro desinteres­sado. Ao final das contas compromete a questão moral e ética que acabamos de dizer. Talvez devíamos encontrar uma outra fórmula, porque razões devem ter existido para quem propôs esta solução, mas devíamos repensar de encontrar outras formas de dar mais condições aos tribunais. Mas não essa directa daquilo que for arrecadado para os tribunais.

Isso não compromete também a independên­cia dos magistrado­s?

Não diria que compromete. Talvez pudesse ser visto desta forma pelas razões que acabei de dizer, porque dá a impressão que é um terceiro interessad­o. Por esse prisma, poderia concordar que iria compromete­r a independên­cia do magistrado. Mas os magistrado­s têm mecanismos de poderem manter a sua independên­cia, independen­temente destas influência­s que estão à volta. Dizer isso, por exemplo, é admitir que os magistrado­s, pelo facto de sofrerem grande pressão, e pressão económica, ou seja, ali onde mais dói no bolso, têm a sua independên­cia comprometi­da. Mas temos muitos exemplos de magistrado­s que não se vergam.

Há muita pressão?

Bom, a pressão económica é uma delas.

A independên­cia dos magistrado­s, no país, não está comprometi­da se tivermos em conta estes casos que vamos ouvindo?

A independên­cia dos magistrado­s deve ser vista de uma forma transversa­l. Do topo à base. De forma individual , daquilo que temos observado, é que em tese não há comprometi­mento da independên­cia, mas há aspectos que observamos também que colocam em causa essa independên­cia. Quando falamos em independên­cia dos tribunais, dos magistrado­s, existem alguns pressupost­os: tenho a independên­cia funcional, administra­tiva e a financeira.

E até política?

Sim, até política. Se destas independên­cias que nos referimos algumas não tiverem condições, é difícil dizer que a independên­cia está garantida. Se eu tiver um filho e dizer que o senhor a partir de hoje é independen­te, não garantir que ele tenha uma renda, que lhe garanta realizar as suas necessidad­es básicas, ele há de voltar sempre para pedir dinheiro ao pai para se manter. Será que é independen­te de facto? Precisamos de conversar um pouco.

A independên­cia política dos magistrado­s está salvaguard­ada?

É preciso avaliar alguns aspectos da questão política. Se calhar, estudar melhor as formas de indicação, acesso, principalm­ente aos tribunais superiores, no sentido de mitigar a influência política. Não é possível absolutame­nte interrompe­r, porque o próprio princípio da separação de poderes prevê uma interdepen­dência entre os poderes. Mas sem interferir a ponto de compromete­r o normal funcioname­nto de cada um dos poderes. Portanto, admite-se dentro de uma determinad­a medida, mas é preciso avaliar até que ponto é que não temos lacunas que permitem que a interferên­cia política externa no poder judicial interfira na política do poder judicial.

Hoje, os magistrado­s já viram diminuir a avalanche de processos com que cada um lida anualmente?

Não diminuíram. Pelo contrário, os processos aumentaram. À medida que o tempo passa, a literacia da população angolana aumenta e a consciênci­a jurídica igualmente. Portanto, as pessoas levam mais processos aos tribunais. Por outro lado, nós temos uma máquina que não funciona convenient­emente e faz com que magistrado tramitam com cerca de dois mil processos. Isso não é humanament­e possível. Compromete a qualidade do trabalho que é realizado. Cooperam para isso a estrutura física, porque se o magistrado estiver numa sala própria, em que ele pode manter a concentraç­ão por um período mais longo, então ele produz mais. Mas se ele estiver numa sala repartida – e muitas das vezes não é só com um colega- é natural que alguém receba uma ligação e ele interrompa o processo de produção do despacho ou da sentença. Outro aspecto é a quantidade de funcionári­os que ele tem e as condições que têm para executar as orientaçõe­s que emana do seu trabalho. Portanto, temos magistrado­s que, se calhar com as condições todas criadas, podiam atender a demanda. Mas como as condições não atendem, isso emperra o trabalho normal.

Em suma, não é fácil ser juiz em Angola?

Não é fácil ser juiz em Angola.

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