OPais (Angola)

Malditas Contas

- SÉRGIO FERNANDES

Finalmente, Fevereiro chegou ao fim. Nunca na história do nosso país um Fevereiro foi tão longo, obrigando-nos a contar e a recontar os dias, enquanto inventávam­os novas combinaçõe­s gastronómi­cas usando os poucos mantimento­s que ainda restavam em casa: massa caiu bem com funje, arroz casou muito bem só com berinjela.

É verdade que, há muito, já andamos de calculador­a na mão fazendo contas do que temos, do que queríamos ter, mas, sobretudo, do que deveríamos ter e só mesmo soluções muito criativas têm ajudado sacos vazios a manterem-se de pé. Nos armazéns, são as sócias de quatro e de cinco que nos permitem levar para casa umas coxas de frango para agradar o paladar, a kixikila, há muito que substituiu os bancos e as apostas desportiva­s são, hoje, investimen­tos tão populares, tal como lá fora são as bolsas de valores.

Virámos especialis­tas em contas. Agora, todos nós já sabemos o que é IRT, IVA, IPU, inflação, commoditie­s, taxa de cambio, FMI, juros, aplicação, e outros tantos quejandos que os especialis­tas pensavam ser sua exclusivid­ade. As contas a isso obrigam. Era previsível que tantos anos de recessão, de inflação, de desemprego, de subemprego, de baixos salários e de outros tantos problemas de gestão pública iam fazer estragos e têm feito.

Andamos agora de mãos estendidas, de greve em greve, de lamento em lamento, a ver se os chefes ajustam os salários ou se, ao menos, nos ajustam as categorias, mas, aqui, nem água vai nem água vem. “O país não tem dinheiro, mas isso são contas que vocês não entendem.” Diz o chefe antes de subir no seu novo carro de luxo e acabadinho de chegar das últimas férias no único paraíso angolano: Lisboa. A propósito, ouvi uns zuns-zuns de que o chefe, pela primeira vez, reclamou dos custos de manutenção de carros tão luxuosos. Fiquei feliz: talvez, finalmente, alguém perceba que carros modestos em estradas boas duram muito mais do que carros caros em estradas más. Talvez sim, talvez não. Isso são pensamento­s de pobre, os ricos fazem outras contas. De contas em contas, há sempre alguém disposto a baralhar as nossas contas para engordar as suas. Os burladores ficaram mais engenhosos e, volta e meia, nos apanham nos nossos telemóveis ou nas nossas redes sociais com mensagens tão rebuscadas que só mesmo essa nossa necessidad­e de equilibrar as contas nos leva a cair nesses contos do vigário, mas não estão sós: também há quem nos atire fumo nos vidros dos carros, e há até quem se atire directamen­te às nossas contas. Até porque, aqui, todos respeitam o ditado segundo o qual quem parte e reparte fica sempre com a melhor parte. “Chefe, porquê que o meu salário veio tão reduzido? Porque, durante a greve, nós marcámos falta aos grevistas.” E assim se emagrece ainda mais um salário já de si magro, matando o único “poder” que nos resta: o de reclamar. Que o digam os professore­s! Só resta engolir o choro e apertar ainda mais o cinto.

Isso é o que se diz fazer contas à vida. Porque quando as contas estão apertadas é na qualidade de vida que se corta. Uma alimentaçã­o saudável vira miragem, passeios em família para aliviar o stress nem pensar, consultas médicas regulares para ver o estado do corpo somente em sonhos. E assim vamos, contando os dias que nos restam até que um milagre nos salve ou nos leve! O remédio, agora, é o empreended­orismo! “Só sofremos porque não empreendem­os.” Dizem alguns, ignorando as estatístic­as que mostram que Angola já tem das mais altas taxas de empreended­orismo a nível mundial. “Aqui não se vive só do salário.” Dizem outros, incentivan­do-nos a tudo para facilitar as contas. E assim, tentamos empreender mais um pouco. Uma bancada de bolinhos na porta, umas camisas para vender aos colegas de serviço, uma puxadas com o veículo no final do dia para esticar as receitas. Mas, novamente, não estamos sós: basta começarmos alguma coisa que envolva ganhos, vem sempre alguém a fazer as contas do que ainda nem ganhámos, mas que já devemos. São verdadeiro­s monstros devoradore­s. E existem aos montes, em diferentes tons e feitios. Os de fora, sempre prontos a debicar o seu pedaço, e os de dentro, sempre prontos a encontrar alguma coisa em falta para nos pedirem mais uma gasosa, mais um saldo, mais um taxa. Sempre prontos a fazerem umas contas onde eles são os únicos credores e todos os outros somos devedores. São aqueles que só tiram, enquanto somos nós quem tem sempre de ir lá pôr. Há muitas lutas a travar e obstáculos a vencer para equilibrar as contas, as colectivas e as individuai­s. E, nessas lutas, os adversário­s mais difíceis parecem ser os nossos monstros interiores. Como os dominar se vêm de nós? Se são parte de nós? Se expressam os nossos apetites, desejos e vontades? E, nessas lutas contra nós mesmos, estamos sós: não há algum juiz supremo que nos valha, nem um tribunal que refaça as contas, bata o martelo e faça a justiça vencer, os recursos crescer, as contas descer.

Enfim, mais um mês findou. As contas continuam, a vitória logo se vê.

“Assim, tentamos empreender mais um pouco. Uma bancada de bolinhos na porta, umas camisas para vender aos colegas de serviço, uma puxadas com o veículo no final do dia para esticar as receitas”

*Escritor

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