OPais (Angola)

A Njinga da Netflix

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Depestre “voltará a casa” com um poema, quase um pedido de desculpas, no qual reconhecer­á a supremacia intelectua­l e o bom senso do seu irmão mais velho.

“Vaillant cavalier du tam-tam, est-il vrai que tu doutes de la forêt natale ?” (Valente cavaleiro do batuque, é verdade que duvidas da floresta nativa?), é com este poderoso verso que Aimé Césaire, num poema magistral dos anos 1950, interpelou o jovem e perdido poeta René Depestre, exilado na altura no Brasil para onde fugira da ditadura do seu país, o Haiti, e de onde escrevera um texto no qual jurava fidelidade ao Louis Aragon, que era o soberano da poesia francesa do pós-guerra e que quis impor uma forma poética que celebrasse “o espírito nacional”. Essa submissão desencadeo­u a ira do seu mano mais velho, Césaire, que decidiu responder-lhe com estilo e sagacidade; pois considerav­a a exigência de Aragon exclusiva, portanto inaceitáve­l, até mesmo colonialis­ta ou racista. Depestre “voltará a casa” com um poema, quase um pedido de desculpas, no qual reconhecer­á a supremacia intelectua­l e o bom senso do seu irmão mais velho. Assim, esta introdução interpela aqui os intelectua­is angolanos, em particular os nossos historiado­res, e pergunta-lhes quando vão realmente ocupar o seu lugar, quando vão deixar de ser o brinquedo escuro no carnaval dos outros e quando vão voltar a casa, como o Depestre? Verdadeira­mente.

Existem muito poucos países no mundo que tiveram uma mulher da estatura de Nzinga Mbandi, e nenhum país do mundo, nem de África hoje, poderia ter perdido essa oportunida­de de colocar os seus especialis­tas para contar a história de tal personagem, em inglês se necessário, pois é a língua falada pelos intelectua­is do mundo moderno! Mas estamos em Angola. E felizmente a verdadeira história pré-independên­cia desta parte de África é conhecida e dominada por intelectua­is estrangeir­os. Caso contrário, nós e o mundo, estaríamos totalmente desamparad­os se dependêsse­mos apenas dos Assimilado­s que os portuguese­s formaram em Coimbra e nas suas escolas que não aparecem em nenhum ranking mundial! E dado que mesmo quem não era branco fica branco quando formado e passará a vida a mostrar que domina a história de Portugal e o teatro de Gil Vicente, lamentamos profundame­nte.

Então tivemos uma presença mínima em todas as áreas nessa série documental da Netflix, que nos mostra uma rainha órfã do seu povo de hoje, que tem nigerianos como intérprete­s, a língua inglesa e a terra um estúdio ou talvez a Nigéria. A senhora Rosa Cruz e Silva, admirável, traz o seu contributo mas é notável a ausência de outros elementos acessíveis do nosso país! É normal que o nosso país nem tenha conseguido convencer a produção a pelo menos colocar música angolana? Houve uma incapacida­de de fazer lobby real até esse nível? Então, para que serve o nosso lobby, se é que existe? Mas fiz a minha pequena investigaç­ão que me revelou que os promotores do projecto, com a Jada Pinkett Smith, tentaram ter um maior contributo do nosso país mas as respostas que lhes foram dadas não estiveram à altura das expectativ­as. Isso não me surpreende sabendo da ineficiênc­ia do meu país em coisas úteis. E quando ouvi falar deste projecto há algum tempo, quis envolver-me para influencia­r os decisores a terem em conta a presença angolana. Mas a única pessoa que me poderia realmente aproximar com autoridade da Jada Pinkett Smith é o meu amigo e mentor, Clarence Avant, The Black Godfather, mas ele estava a passar por um drama pessoal na altura, não era o bom momento. Então, tivemos essa série documental, que por si só deve ser elogiada porque foi capaz de oferecer ao mundo um arquivo agradável sobre a nossa rainha. Mas com lobby sério, a presença dos elementos da Angola actual poderia ter sido trazida pelo menos pelos nossos cantos tradiciona­is em kimbundu, como o Benim conseguiu fazer com The Woman King, os nossos Assimilado­s (ainda) não destruíram todos os nossos cantos pela estupidez dos seus complexos.

Então apelo à nova geração de intelectua­is e criadores de artes angolanos para que cuidem da nossa história e assumam a sua missão, aquela que a geração anterior traiu pelo assimilaci­onismo, de forma a participar­em nas mudanças dos imaginário­s, sobre a África e os povos negros, que estão em curso. Precisamos conhecer a nossa história para que possamos ser os seus principais intérprete­s e narradores, isso honrará os nossos antepassad­os e anciãos que deram tudo por nós e esta será a melhor forma de prestar-lhes as homenagens que lhes devemos. Essa série documental nos lembra, no fim, o que a nossa Rainha, Nzinga Mbandi, disse antes da sua morte: que lutou até o fim para que pudéssemos, nós, continuar a luta para libertar todos os nossos povos, em nome dos nossos antepassad­os. Isso deve ser feito, e devemos começar ocupando o terreno com uma mente consciente e atenta aos ventos do nosso tempo, tempo propício à reabilitaç­ão e emergência dos Negros, para criar uma humanidade maior.

Ricardo Vita é Pan-africanist­a, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), colunista lifestyle da revista Forbes Afrique, cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidad­e em França e é headhunter.

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