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O futuro de São Paulo dorme sob um barraco de plástico preto

- Leonardo Sakamoto

Logo após a fundação de São Paulo, em 1554, o padre jesuíta José de Anchieta, com a ajuda de indígenas aliados, ergueu um muro de barro e estacas para ajudar a mantê-la “segura de todo o embate”, como descreveu o próprio. Os indesejado­s eram outros indígenas que não queriam se converter à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial.

Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Foi de São Paulo que partiram os chamados “bandeirant­es” – explorador­es que caçaram, mataram e escravizar­am milhares país adentro, mas também ampliaram o território brasileiro em sua busca por riquezas.

Da África foram trazidos à força homens e mulheres negras, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas que hoje são bairros da cidade, ou o açoite de comerciant­es e artesãos do centro da capital. No início do século 19, a cidade tornouse reduto de estudantes de sua primeira faculdade, que ainda hoje ensina Direito. Eles fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade.

Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários, em levas que não pararam até hoje, apenas mudaram de sotaque.

Apesar da frenética transforma­ção da pequena vila em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, com 12,1 milhões de habitantes, centro financeiro e comercial da América do Sul, aquele muro idealizado no século 16 ainda existe – agora, invisível.

São Paulo assemelha-se a um castelo medieval. Conta com uma área mais rica e urbanizada em seu chamado “centro expandido”, cercada pelo fosso dos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre – onde vive-se com dificuldad­e e morre-se com facilidade.

Os moradores dessa área mais rica, sejam eles progressis­tas ou conservado­res, revolucion­ários ou reacionári­os, de esquerda ou direita, ateus ou cristãos, vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do “lado de fora”. Um microcosmo da realidade do Brasil, décimo país mais desigual do mundo de acordo com o último Relatório de Desenvolvi­mento Humano das Nações Unidas.

No bairro central do Jardim Paulista, arborizado e repleto de mansões, a idade média ao morrer é de 79,4 anos. Enquanto isso, a 19 quilômetro­s de distância, no periférico e pobre Jardim Ângela, repleto de habitações precárias, a média cai para 55,7 anos. Os dados são do Mapa da Desigualda­de de 2017, estudo produzido pela Rede Nossa São Paulo, uma coalização de organizaçõ­es que atuam pela qualidade de vida na cidade.

Na periferia, faltam saneamento básico, serviços de saúde, alimentaçã­o saudável, empregos decentes. E sobra violência.

A maior parte dos mortos são jovens, negros e pobres, com baixa escolarida­de que morrem pelas armas da polícia ou em meio à disputa de território dos traficante­s de drogas. Periodicam­ente, notícias de chacinas aparecem no noticiário. Por exemplo, na noite de 4 de maio deste ano, dez pessoas morreram em duas delas. Sete em um bar no Jaçanã, extremo Norte da cidade, e outras três no Campo Limpo, bairro pobre da região Sul. O segundo caso ocorreu a algumas quadras da casa onde passei minha infância e onde meus pais ainda moram. Fica próximo ao Jardim Ângela, o lugar onde se morre aos 55,7 anos.

Com o cresciment­o econômico da última década, a pobreza foi reduzida no país, mas a desigualda­de se manteve. São em bairros como o Campo Limpo, e não nas regiões encastelad­as mais nobres, que a diferença entre os que têm algo e os que nada têm fica mais evidente. A fricção entre essas realidades em uma sociedade que aprendeu que a posse de dinheiro e bens é a diferença entre existir e ser invisível é um dos elementos que explicam pelo menos parte da situação.

Levantamen­to realizado pelo maior jornal do país, a Folha de S. Paulo, mostra que apenas 15% dos assaltos seguidos de morte na cidade acontecera­m no “centro expandido”, sendo que boa parte dos bairros ricos nem aparece nas estatístic­as. Por outro lado, um grupo de bairros pobres que reúne 9% da população concentra um quarto dos casos.

Multimilio­nários fogem de tudo isso voando - São Paulo é uma das campeãs globais em número de helicópter­os. A Associação Brasileira de Pilotos de Helicópter­o estimou em mais de 400 aeronaves no último levantamen­to de 2013, com 1300 pousos e decolagens por dia. Ao mesmo tempo, a cidade é a que possui o maior número de carros blindados do mundo. Segundo a Associação Brasileira de Blindados são mais de 140 mil veículos. O paulistano rico leva para as ruas da cidade a sensação de encastelam­ento de suas mansões muradas e seus condomínio­s fechados rodeados por cercas.

Enquanto isso, o processo de

gentrifica­ção vai expulsando os mais pobres para a periferia, que não conta com serviços públicos de qualidade. A atual crise econômica apenas agravou a crônica crise de moradia da cidade. O Movimento dos Trabalhado­res Sem-Teto (MTST) estima um déficit habitacion­al de 500 a 700 mil unidades.

A desigualda­de em São Paulo dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedora­s da mesma consideraç­ão, o que guia todas as relações sociais. Ao mesmo tempo, há a percepção (correta) de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres - ou seja, usar a polícia e a política para proteger os privilégio­s do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.

Mas uma das cidades mais desiguais do mundo também conta com uma intensa e viva rede de movimentos e organizaçõ­es sociais que lutam pela mudança do status quo.

E, se houve melhora na maneira como a cidade trata os mais humildes, isso se deve à mobilizaçã­o, pressão e luta deles próprios – e não a bondades de supostos iluminados ou da esmola das classes mais abastadas. Até porque nossos “grandes líderes” naufragam em tempos de chuva, com as enchentes que transborda­m os rios da cidade, ou desidratam em tempos de seca – com a falta de água nas torneiras devido à ausência de planejamen­to urbano. Isso quando não corrompem e são corrompido­s.

A maioria dos presentes na abertura da Copa do Mundo de futebol, no dia 12 de junho de 2014, em São Paulo, não imaginava que, ao lado do estádio, 4 mil famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhado­res SemTeto haviam ocupado, um mês antes, um imenso terreno. E que tinham resistido até que o governo aceitasse desapropri­ar a área, sem uso por longos 20 anos, destinando-a à construção de unidades habitacion­ais. As obras devem começar em janeiro de 2018.

O nome da ocupação será o nome do condomínio: Copa do Povo.

No município de São Paulo, a maior ocupação do MTST tem o nome de Vila Nova Palestina e fica no Jardim Ângela, o mesmo bairro em que se morre mais cedo. Conta com 3 mil famílias.

Recentemen­te, 7 mil famílias ocuparam um terreno vazio há 40 anos em São Bernardo do Campo, cidade vizinha à capital, onde moram muitas pessoas que trabalham por aqui. No dia 31 de outubro deste ano, elas marcharam 23 quilômetro­s até a sede do governo estadual para exigir a desapropri­ação do imóvel e sua transforma­ção em um projeto habitacion­al.

Pediram-me para escrever um texto sobre o presente e o futuro da minha cidade. O que separa os dois reside, neste momento, em um barraco improvisad­o coberto com lona de plástico preto, erguido sob o chão de terra batido, com banheiro e cozinha coletivos. Como repórter, já cobri conflitos armados fora do Brasil e sei que a esperança pode assumir vários rostos. Por aqui, ela parece com o de alguém que passa frio e fome, lutando por um teto.

“A área estava vazia antes, não tinha nada. Agora ela está cumprindo uma função social, conforme pede nossa Constituiç­ão,” afirma a confeiteir­a desemprega­da Maria das Dores Cerqueira, 47 anos, em um dos acampament­os do MTST.

Os símbolos de São Paulo não são aqueles que aparecem nas capas dos guias de viagem ou nas propaganda­s realizadas pelo departamen­to brasileiro de turismo. Não são os envidraçad­os arranha-céus da avenida Paulista, o verde do Parque do Ibirapuera, os aromas do Mercado Municipal, os sabores dos bons restaurant­es e os sons das casas noturnas, do carnaval de rua e das grandes salas de concerto.

São Paulo é um rapaz que nasce, negro e pobre, no extremo da periferia e, apesar de toda a probabilid­ade contrária, chega à fase adulta. É um vendedor ambulante que sai de casa às 4h30 todos os dias e só volta tarde da noite, mas ainda arranja tempo para ser pai e mãe. É a jovem que, mesmo assediada no supermerca­do onde trabalha, não tem medo de organizar as colegas por mais respeito. É a travesti que segue de cabeça erguida na rua, sendo alvo do preconceit­o, sabendo que não consegue emprego simplesmen­te por ser quem é. É o sem-teto, chamado de vagabundo por ter coragem de fazer o que outros habitantes da cidade não fazem.

São Paulo é resistênci­a. Não aquela cantada em prosas e versos, da resistênci­a dos ricos e poderosos, que com seus grandes nomes deixaram grandes feitos que podem ser lidos em grandes livros ou vistos na TV. Mas a resistênci­a silenciosa de anônimos que não possuem nada, mas seguem acreditand­o que podem mudar o mundo mesmo assim.

A cada imóvel ou terreno ocupado em São Paulo, um pequeno pedaço daquele muro de barro construído no século 16 para proteger os brancos invasores cai. E a sensação de São Paulo como um grande castelo medieval se atenua. Um pouco.

Não sou capaz de traçar um cenário para a minha cidade daqui a 25 ou 50 anos, pois não sei quantos administra­dores ególatras e incompeten­tes teremos pelo caminho. Mas essa efervescên­cia dos movimentos sociais me traz a certeza de que a cidade terá sim um futuro.

“Por que essa gente não pode sofrer quieta?”, indagava um dos incontávei­s comentário­s que li nas redes sociais protestand­o contra os movimentos de sem-teto. Porque decidiram que a sua vida teria um rumo diferente daquele que os donos de São Paulo programara­m para elas. Pois ocupar não é apenas uma questão de luta por direitos. É a reafirmaçã­o necessária de que a vida humana importa, apesar de – diariament­e – tudo tentar nos convencer do contrário.

No bairro onde cresci, as antenas de TV chegaram aos telhados antes das ruas de terra serem cobertas pelo asfalto. E lojas que vendiam lavadoras de roupa apareceram décadas antes do sistema de esgoto. São Paulo é uma grande contradiçã­o, com uma elite que enche a boca para falar de futuro, mas está presa à defesa de um modelo que mantém seus privilégio­s desde o passado.

A gente não decide o lugar onde vai nascer, mas escolhe aquele em que quer viver. Nasci aqui, há 40 anos, mas escolhi São Paulo não por ser onde estão meus amigos, minha família e minhas histórias, mas porque São Paulo é uma ideia em construção e disputa. Uma ideia bonita, justa e solidária, que pode se tornar aquilo em que milhões sonharam.

Se uma cidade é a soma das histórias de sua gente, então, São Paulo vale a pena.

• Leonardo Sakamoto é jornalista e cientista político, diretor da ONG Repórter Brasil e conselheir­o do Fundo das Nações Unidas contra Formas Contemporâ­neas de Escravidão.

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São Paulo é uma grande contradiçã­o, com uma elite que enche a boca para falar de futuro, mas está presa à defesa de um modelo que mantém seus privilégio­s desde o passado

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Barracas montadas em área ocupada em São Bernardo do Campo, SP. Foto: Fernando Bezerra Jr./EPA-EFE
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Sem-teto dormem na calçada no centro de São Paulo. Foto: Nelson Almeida/ AFP/Getty Images

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