Memórias do boteco 1
O boteco Cinzel era um verdadeiro enclave entre fábricas de autopeças, automóveis, construção civil, mecânicas, funilarias e todo o tipo de comércio envolvido no ramo. Após o furdunço do almoço, o início da tarde era o momento de limpar mesas, repor estoques, receber fornecedores, atender vendedores. Seu Chico, dono da casa, no batente desde às 5h30, aproveitava a calmaria para tirar um cochilo em sua Kombi. Depois, corria por bancos, trocava cheques e fazia o mercado.
Também era a hora do encontro dos velhos amigos. Alguns ainda na ativa e outros, aposentados. Histórias, café e, vez ou outra, uma branquinha com limão. O velho Bauducco, já surdo após passar 40 anos entre tornos e bancadas, sabia o paradeiro —ou inventava— de todos os amigos com quem compartilhou o chão de fábrica. Adolescente maroto, eu me divertia com o torneiro, perguntava quase ber- rando: “Seu Bauducco, o Fred Mercury ainda está trabalhando?” “Tavinho, voltou mais uma vez para a Ford!”, respondia.
O mestre Piotto chegava com seu Fuscão verde impreterivelmente às 13h30. Trazia o amigo Vittorino. Um italiano de 1,90 m e uma mão tão grande que parecia uma tábua de carne. Parmeristas, falavam das defesas de Oberdan, da classe de Julinho, de Jair da Rosa Pinto e de Vavá. Ainda se gabavam dos “jovens” Ademir e Dudu, que surgiram depois.
Já o corintiano Nadal, de sangue espanhol, respondia à altura e declamava as façanhas de Cláudio, Baltazar e Luizinho. Lembrava com saudade dos bairros do Brás e do Bexiga, onde passara a juventude. Tomava um dedinho de café e todas as tardes reclamava da música moderna. Não se conformava com a morte do tango de Gardel e das melodias entoadas por vozes como Dalva, Celestino e Francisco Alves.