Agora

Soberana

- Vitor Guedes é jornalista, ZL, equilibrad­o e pai do Basílio

Alemão nasceu em 1977. Ditadura. Não tinha diálogo. Contestar a hierarquia era roubada. No almoço, Jesus Cristo, vira e mexe tinha o odioso bife de fígado; antes, no café, o pobre garoto tinha de engolir gemada. Na marra. E correr para a escola... Vambora, vambora, tá na hora, vambora. Repita. E a cena se repetia. Todo dia. Aquela corrida até o ponto de ônibus na companhia da irmã Marília. Mala por baixo da roleta; na ida, linha Largo São Francisco, na volta, Grajaú ou Vila Santa Catarina. A TV, domingo, era no canal 4. Ah, Sônia Lima, é coisa nossa... Com todo o respeito, Wagner Montes, como ela era gostosa. Na época, raspadinha era gelo com groselha na praia: a moda era nu em muitos pelos. Publicaçõe­s pré-ohana. Voltando à televisão, durante a semana, Maria Dolores não perdia um capítulo da novela, seletor no 5. Nem tudo era imposição. Senta que lá vem história. Ao filho era liberado Bambalalão, no 2, à tarde (ah, Gigi, era ainda melhor que a Sônia Lima), e costelinha de porco, sábado, no Chuletão. Farofinha, batata temperada curtida e muito limão. Só diversão. E, apesar de são-paulina, a mãe liberava o aparelho de som que ocupava metade da estante da sala para o filho, vestido com a camisa cinza do Solito, ouvir o José Silvério narrar os jogos do Coringão. Nunca antes de fazer a maldita lição. E a tarefa, todos os dias, tinha que estar um brinco. Ou a página era arrancada. Muito barulho por nada. Apesar da insistênci­a da mãe, a caligrafia de Alemão continuou horrorosa. Em letra bastão ou cursiva, nem ele mesmo entendia a própria prosa. Era um problema fazer cola. Como não iria adiantar nada, o recreio era para comer Stiksy e jogar bola. A disciplina era imposta na navalha. Nada de reco. O papo reto era direto com o barbeiro. Alemão nem se manifestav­a. Imperativa, Dolores ordenava: “corta tigela”. Como em todo quartel, não tinha esse papo de opção. Mas veio a reabertura na metade dos 1980. Alemão se libertou do k-7 do Roberto Carlos da mãe. Liberado para mudar o penteado. E ouvir Raul e Titãs. “Clitóris, clitóris, ah, clitóris”. LP comprado com o dinheiro da mãe. Viva o capitalism­o selvagem. Em qualquer fase, mãe é soberana. Até porque o freguês tem sempre razão.

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