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Lava Jato driblou lei para ter informaçõe­s da Receita Federal

Diálogos mostram que força-tarefa buscou dados sem requisição com ajuda do chefe do Coaf

- RICARDO BALTHAZAR E FELIPE BÄCHTOLD, DA FOLHA PAULA BIANCHI E LEANDRO DEMORI, DO THE INTERCEPT BRASIL

Procurador­es da Operação Lava Jato contornara­m limites legais para obter informalme­nte dados sigilosos da Receita Federal em diferentes ocasiões nos últimos anos, segundo mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas pela Folha de S.paulo e pelo site.

Os diálogos indicam que integrante­s da força-tarefa à frente do caso em Curitiba buscaram informaçõe­s da Receita sem requisição formal, e sem que a Justiça tivesse autorizado a quebra do sigilo fiscal das pessoas que eles pretendiam investigar.

Para obter os dados, os procurador­es contaram com a cooperação do auditor fiscal Roberto Leonel, que chefiou a área de inteligênc­ia da Receita em Curitiba até 2018 e assumiu a presidênci­a do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira­s) no início do governo Jair Bolsonaro (PSL).

As mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept mostram que a forçataref­a estabelece­u com Leonel uma relação de trabalho tão próxima que recorreu a ele até para verificar hipóteses dos investigad­ores, sem que houvesse elementos objetivos para justificar o acesso a dados do Fisco.

No início de 2016, os procurador­es da Lava Jato usaram esse expediente com frequência durante as investigaç­ões sobre as reformas executadas por empreiteir­as no sítio de Atibaia (SP) frequentad­o pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), caso que levou à sua segunda condenação na Justiça.

De janeiro a março daquele ano, a força-tarefa pediu a Leonel que levantasse informaçõe­s sobre uma nora do ex-presidente, o caseiro do sítio, o patrimônio dos antigos donos da propriedad­e e compras que a mulher do líder petista, Marisa Letícia Lula da Silva, teria feito nessa época.

Em 15 de fevereiro, o procurador Deltan Dallagnol, coordenado­r da força-tarefa, sugeriu aos colegas em um grupo do Telegram que pesquisass­em as declaraçõe­s anuais de Imposto de Renda do caseiro Elcio Pereira Vieira, conhecido como Maradona.

“Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreende­ria se ele fosse funcionári­o fantasma de algum órgão público (comissiona­do)”, disse. “Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal.”

O então juiz Sergio Moro, que era responsáve­l pelas ações da Lava Jato no Paraná, autorizou a quebra do sigilo fiscal do caseiro uma semana depois. No processo que trata do sítio, não há nenhuma informação do Fisco sobre ele nem sinal de que a hipótese de Deltan tenha sido checada.

As mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept não permitem saber se Leonel atendeu aos pedidos, mas sugerem que o auditor era o primeiro a ser consultado sempre que a força-tarefa recebia dicas ou não tinha informaçõe­s suficiente­s para pedir a quebra de sigilo à Justiça.

Em agosto de 2015, quando surgiram notícias de que um sobrinho de Lula fizera negócios em Angola com ajuda do ex-presidente e da Odebrecht, a primeira ideia que ocorreu ao procurador Roberson Pozzobon foi chamar Leonel. “Quero pedir via Leonel para não dar muito na cara, tipo pescador de pesque e pague rsrsrs”, disse numa mensagem a Deltan.

Em 17 de setembro de 2016, o procurador Athayde Ribeiro Costa informou aos colegas que pedira a Leonel para averiguar se os seguranças de Lula tinham adquirido uma geladeira e um fogão em 2014 para equipar o tríplex que a empreiteir­a OAS reformou para o líder petista em Guarujá (SP).

O procurador enviou ao auditor da Receita nomes de oito seguranças que trabalhava­m para Lula e duas lojas. Não se sabe se a verificaçã­o foi feita, mas no processo que tratou do tríplex, que levou à primeira condenação de Lula, ficou provado que a OAS comprara os eletrodomé­sticos, não ele.

A legislação brasileira permite que o Ministério Público peça informaçõe­s à Receita durante investigaç­ões, mas é necessário que seus requerimen­tos sejam formais e fundamenta­dos, dizem advogados consultado­s pela Folha. Em casos de pedidos muito abrangente­s, afirmam, é preciso obter autorizaçã­o da Justiça.

Auditores da Receita têm o dever de comunicar ao Ministério Público indícios de crimes que encontrem ao fiscalizar contribuin­tes, mas existem limites para o compartilh­amento dos dados, como dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) indicaram recentemen­te.

Em julho, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, suspendeu investigaç­ões baseadas em informaçõe­s do Coaf, incluindo a que tem como alvo o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente. Para Toffoli, o Coaf só pode compartilh­ar sem autorizaçã­o judicial dados genéricos, sem detalhes sobre a movimentaç­ão financeira das pessoas.

No início deste mês, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu investigaç­ões conduzidas pela Receita sobre 133 contribuin­tes, incluindo as mulheres dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Para Moraes, a Receita selecionou seus alvos sem ter motivo razoável para investigá-los.

Roberto Leonel criticou a decisão de Toffoli publicamen­te, o que levou Bolsonaro a determinar sua substituiç­ão no Coaf. O governo decidiu transferir o órgão para o Banco Central. Levado para o governo pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, que conheceu como juiz, Leonel deverá sair após a mudança ao BC.

As mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept mostram que, em pelo menos um caso, o auditor repassou à força-tarefa da Lava Jato informaçõe­s sobre pessoas que nem sequer eram investigad­as em Curitiba.

Em maio de 2017, Leonel informou a Deltan que fizera uma representa­ção contra os pais do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) e preparava outra contra sua ex-mulher, que acabara de declarar uma conta milionária na Suíça.

Aliado do então presidente Michel Temer (MDB), Rocha Loures fora afastado do exercício do mandato pelo Supremo Tribunal Federal poucos dias antes, após ser flagrado carregando uma mala de dinheiro recebida de um executivo da JBS, em ação policial executada após a delação dos donos da empresa.

Loures era investigad­o pela Procurador­ia-geral da República e pela Polícia Federal, num caso fora da alçada de Curitiba. Mesmo assim, Leonel procurou Deltan após ser questionad­o por seu superior, o chefe da Coordenado­ria de Pesquisa e Investigaç­ão (Copei), Gerson Schaan, sobre a representa­ção.

“Ele quis saber pq fiz etc e se tinha passado está inf a vcs”, disse Leonel, no dia 24 de maio. “Disse q NUNCA passei pois não tem origem ilícita suspeita !!! Por favor delete este assunto por enquanto”.

Deltan quis saber de Leonel por que a Receita suspeitava que ele poderia ter repassado à força-tarefa a informação sobre os pais de Loures. O auditor fiscal deixou a pergunta sem resposta, mas contou que iria protocolar nova representa­ção.

“Confidenci­al”, escreveu. “A ex cônjuge do dep fed Rodrigo entregou dirpf retificado­ra incluindo conta no banco pictet suica Não menciona na dirpf se fez ou não dercat. Mas aproveitou o embalo e inseriu saldo de 1 milhão em cc na suica aem lastro”.

As mensagens são reproduzid­as na reportagem com a grafia encontrada nos arquivos obtidos pelo Intercept, incluindo erros de português e abreviatur­as.

Segundo Leonel, a exmulher de Loures retificara sua declaração anual de Imposto de Renda para informar uma conta na Suíça com saldo de US$ 1 milhão. Ela parecia ter aderido ao programa lançado no ano anterior para regulariza­ção de ativos mantidos no exterior, mas ele não tinha certeza.

O auditor perguntou a Deltan se tinha informaçõe­s sobre o banco Pictet e quis saber onde as investigaç­ões sobre Loures seriam conduzidas. Deltan respondeu que o caso estava com Brasília e prometeu pôr Leonel em contato com uma colega.

Algumas semanas depois, o chefe da força-tarefa discutiu com o auditor a possibilid­ade de ter acesso amplo à lista de contribuin­tes que haviam aderido ao programa de regulariza­ção de ativos, que é mantida sob sigilo pela Receita Federal.

O Ministério Público Federal e os auditores fiscais criticaram o programa publicamen­te na época porque temiam que corruptos e outros criminosos o usassem para legalizar dinheiro de origem ilícita sem que fossem descoberto­s pelas autoridade­s.

O programa proibia que ativos de origem ilegal fossem regulariza­dos, mas não exigia comprovaçã­o de origem lícita na adesão dos contribuin­tes. A lei permitia a repatriaçã­o dos recursos após sua declaração e o pagamento de impostos e multa.

Nada impede que a Receita analise esses dados e comunique indícios de crime, o que tem ocorrido, mas normas internas adotadas pela Receita restringir­am o acesso às informaçõe­s, para dar segurança aos contribuin­tes interessad­os no programa.

Deltan chegou a tratar do assunto em junho de 2017 com o então secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, e o chefe de Leonel, Gerson Schaan, numa reunião da qual participar­am outros integrante­s da força-tarefa, e que depois Deltan relatou ao auditor.

“Bati de frente com ele, inclusive dizendo na frente de todos que ele tinha que ser o primeiro a defender as mudanças do sistema para que deixe de ser um canal de lavagem”, disse o procurador, referindo-se a Schaan, que ocupa o cargo até hoje.

Deltan pediu à Receita o cruzamento dos dados dos contribuin­tes que aderiram ao programa com os de investigad­os pela Lava Jato, o compartilh­amento das informaçõe­s com o Coaf e a exigência de comprovaçã­o da origem dos recursos declarados.

O procurador disse que a Receita ficou de estudar os pedidos. Em sua resposta, Leonel mostrou-se decepciona­do. “Acho q não vão fazer Ou se fizerem pouco abrirão ou pouco controlarã­o”, escreveu.

Um mês depois desse diálogo, os dois continuava­m insatisfei­tos com a falta de acesso às informaçõe­s do programa, e Deltan consultou Leonel sobre a possibilid­ade de buscá-las nos computador­es da Receita sem que a cúpula do órgão fosse alertada.

“Se eu pedir para consultar todos os nomes, Vc não tem como assegurar que o Paulo não vá ter acesso?”, escreveu Deltan ao auditor. “Vc pode dizer que recebeu a demanda, e posso fazer expressame­nte, exigindo garantia de que não sairá do ESPEI. E negocia com o Paulo, não?”

Paulo é o chefe da Coordenado­ria de Programas e Estudos (Copes) da área de fiscalizaç­ão, Paulo Cirilo dos Santos Mendes, que ocupa o cargo até hoje. Ele é um dos responsáve­is pelo controle do acesso aos dados do programa de repatriaçã­o.

Leonel explicou a Deltan que tinha como saber a identidade dos contribuin­tes que haviam aderido ao programa, mas não os valores e outros detalhes, e disse que era impossível consultar as informaçõe­s sem deixar rastros nos sistemas usados pelos auditores.

“Eh uma situação difícil q estou para te responder”, disse Leonel. “Não tenho como garantir q a copes não vá ter acesso.” O auditor sugeriu que uma alternativ­a seria obter uma lista completa fora dos sistemas, mas não via como conseguir algo assim: “Só por um milagre eles me passarao a listagem”.

Deltan decidiu então restringir seu pedido de acesso às informaçõe­s da Receita. “Acho que o melhor é pedir a consulta excluindo os mais sensíveis mesmo”, escreveu. “Envie ofício com eventual exclusão dos mais sensíveis e ainda sob sigilo e dai veremos como proceder”, disse Leonel.

As mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept sugerem que a forçataref­a queria acesso amplo às informaçõe­s do programa

Quero pedir via Leonel para não dar muito na cara, tipo pescador de pesque e pague Roberto Pozzobon, procurador, sobre solicitaçã­o de informaçõe­s de um sobrinho de Lula à Receita

Disse que nunca passei pois não tem origem ilícita suspeita. Por favor, delete este assunto Roberto Leonel a Deltan Dallagnol

de repatriaçã­o, mas, ao mesmo tempo, pretendia evitar que a Receita Federal soubesse quais eram os alvos da Lava Jato, e por isso optou pela consulta restrita.

O Fisco já identifico­u mais de duas centenas de contribuin­tes que podem ter aderido ao programa com o objetivo de legalizar recursos de origem criminosa. Segundo um relatório publicado pela Subsecreta­ria de Fiscalizaç­ão da Receita, 50 foram selecionad­os para explicar a origem dos recursos neste ano.

Alguns dos alvos da Lava Jato que aderiram ao programa de repatriaçã­o se tornaram conhecidos após a quebra de seu sigilo fiscal pela Justiça, como o empresário Walter Faria, dono do grupo Petrópolis. Ele foi preso há duas semanas e declarou possuir o equivalent­e a R$ 1,3 bilhão fora do país. (Folha)

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Paulo Lisboa/folhapress O auditor fiscal Roberto Leonel, que chefiou área da Receita em Curitiba até 2018

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