Agora

Mulher sem rótulos

- CRISTINA PADIGLIONE

Biografada por Carolina Kotscho, Hebe Camargo tem algumas poucas (e perecíveis) fragilidad­es reveladas no filme “Hebe - A Estrela do Brasil”, que estreia no dia 26 de setembro nos cinemas.

Mas, vista sob a ótica atual, a figura da maior apresentad­ora de TV que o Brasil já conheceu certamente faria estrago na cabeça de muita gente que hoje tem a necessidad­e de rotular todo cidadão, anônimo ou famoso, pelo seu viés ideológico.

A saudável ambiguidad­e de Hebe Camargo é o ponto alto do longa, que tem direção-geral de Maurício Farias, marido da atriz que vive a protagonis­ta, em uma performanc­e irrepreens­ível de Andréa Beltrão.

O filme mostra como aquela mulher que brigava para levar a transexual Roberta Close em seu programa, tratando-a como “a mulher mais bonita do Brasil”, recebia também o “doutor” Paulo Maluf e sua esposa, Silvia, para a ceia de Natal.

“A Hebe não é de direita, a Hebe não é de esquerda, a Hebe é direta”, diz ela em uma das cenas em que fita a câmera com intimidade.

No enredo que a retrata agora, Hebe arranca um selinho de Roberto Carlos diante de seu auditório, comprando o ciúme doentio do marido, Lélio Ravagnani, quase reencarnad­o em Marco Ricca de tão verossímil que o ator se mostra na reprodução gestual do personagem. Mas a mesma Hebe sofria pela desconfian­ça do cônjuge, como uma esposa “normal”, recatada e do lar, ao mesmo tempo em que não se curvava a essa condição, obrigando-o a se desculpar.

Também brigava pela liberdade do filho, Marcelo, aqui vivido por Caio Horowicz, de quem Lélio levantava suspeitas de ser alguém “estranho” por nunca ter aparecido com “uma namorada”.

Hebe não caberia nos rótulos de hoje. Em um dos auges vividos por ela no recorte do filme —que se dedica à década de 1980, na troca da Band pelo SBT—, ela era tratada como “malufista”, credencial que a perseguiu até o fim da vida, mesmo porque ela não fazia questão alguma de negar a amizade.

Do malufismo à descrimina­lização do aborto, a Hebe Camargo original morreu defendendo suas convicções, por mais contraditó­rias que elas pudessem parecer. Esse contraste está bem presente no longa, exibido na noite da última quarta-feira (21) no Festival de Cinema de Gramado.

Hebe defendia os gays em um tempo em que ninguém o fazia. O filme a mostra visitando em uma enfermaria de hospital público o seu amigo e maquiador, uma das primeiras vítimas da Aids daquele período, e o ato público de rezar por sua alma em pleno palco do SBT, desafiando a hipocrisia de um sacerdote que se recusou a se levantar do sofá para orar. Eram os tempos em que a doença era tratada como “coisa do demo”. Hebe já fugia da ideia naqueles dias, enquanto zelava por sua santinha, Nossa Senhora Aparecida, sem qualquer demérito à fé cristã.

Andréa Beltrão como Hebe constrói uma recomposiç­ão impression­ante e escapa da cilada de ser julgada por interpreta­r uma figura tão popular e ainda tão em voga na memória afetiva do grande público. Por mais que a atriz já tenha contado o quanto se dedicou a estudar cada pronúncia de cada sílaba da personagem original, impression­a ouvi-la em cena, dentro do tom, do ritmo e da dicção que inspiram o papel. Quando ela diz “eu sou uma pessoa apaxonada”, assim mesmo, sem o “i”, é possível ouvir a própria Hebe dizer a mesma palavra de modo idêntico.

Não por acaso, o filme abre com uma gargalhada da apresentad­ora, ainda restrita ao áudio, sem a sua

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Fotos Divulgação Andréa Beltrão dá vida a Hebe Camargo
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Felipe Rocha faz interpreta­ção magistral de Roberto Carlos

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