‘Bacurau’ evoca resistência em país que descamba para a ultraviolência
Diretores começaram a elaborar trama há dez anos, mas muitos veem no filme um manifesto sobre Brasil atual
Não se devem lavar as paredes. As marcas de sangue, ali espalhadas, são para ficar gravadas na memória coletiva, um atestado de que a história é a engrenagem que completa a narrativa de “Bacurau”.
O filme dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estreia nesta semana após ter conquistado, em maio, o prêmio do júri no Festival de Cannes.
Faroeste distópico ambientado no interior de Pernambuco, “Bacurau” chega num momento particular, em que o revisionismo histórico é plataforma de governo. E, por mais que seus diretores tenham começado a elaborar a trama dez anos atrás, não faltou quem visse na obra um manifesto sobre o Brasil de hoje —de cisão entre norte e sul, de entreguismo ao estrangeiro e de escalada armamentista.
“Bacurau” se passa daqui a alguns anos. O título, nome de um pássaro noturno e das linhas da madrugada dos ônibus recifenses, batiza um povoado no sertão que vive às turras com o prefeito venal.
A comunidade não chega a ser retratada como utópica no filme, mas desde logo se percebe que ela está alinhada a alguns valores progressistas —o professor primário é uma figura proeminente ali, e o museu histórico tem mais destaque do que a igreja.
A matriarca local, vivida pela compositora Lia de Itamaracá, acaba de morrer, prenúncio dos infortúnios vindouros que chegam a reboque dos mercenários forasteiros.
A partir dali, os diretores descortinam um faroeste com uma sanguinolência que presta homenagem a John Carpenter e traz ecos de realizadores brasileiros que também já filmaram aquele tipo de paisagem sertaneja, caso de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.
Vale lembrar que Jair Bolsonaro perdeu a eleição em todos os estados do Nordeste. “O sertão é um espaço geográfico, mas também cultural”, diz Mendonça Filho. “Ao longo da história, ele não ficou com uma distribuição justa da riqueza, e isso explica por que a resistência ali é constante.”
O maior de todos esses símbolos de resistência, carregado de uma brasilidade ancestral, é Lunga, personagem dotado de uma moral ambígua e que personifica o que seria o cangaço do século 21.
Cabeças até rolarão, o que pode despertar alguma associação com Lampião, Corisco e o bando deles. Mas os diretores logo tratam de despistar. “Cabeças foram cortadas no cangaço, mas a gente vive num país onde é normal que rebeliões em presídios terminem em decapitações”, afirma Mendonça Filho.
A genética cangaceira de fato está em outro lugar, nos anéis e nas roupas da personagem. Os cangaceiros dos anos 1930, diz Dornelles, passavam horas à frente de máquinas de costura. “E ainda assim eram modelos de virilidade”, afirma.
Na obra, Lunga é um (ou uma) pária transexual que se enrijeceu como os demais bacurauenses diante do Estado ausente. Não que isso queira dizer que aqueles sertanejos sejam mostrados com qualquer traço de vitimismo. Os diretores explicam que o embrião do roteiro foi uma reação ao que viam como retratos condescendentes de povos interioranos que surgiram em documentários.
Os invasores de Bacurau, sejam eles os estrangeiros ou seus comparsas entreguistas do Sudeste, estão contaminados por essa visão. Eles são fuzileiros implacáveis que agem como matadores de videogame. Difícil não ver neles a mesma sanha armamentista que há nas imagens espetaculosas da execução do sequestrador do ônibus no Rio de Janeiro, na semana que passou.
A trajetória do filme, lembram os diretores, acabou competindo com o Brasil de hoje. “Os absurdos desses tempos é que diziam o quanto se podia carregar nas tintas”, afirma Mendonça Filho. “Coisas do início do processo começaram a ficar ultrapassadas.” (Folha)