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‘Bacurau’ evoca resistênci­a em país que descamba para a ultraviolê­ncia

Diretores começaram a elaborar trama há dez anos, mas muitos veem no filme um manifesto sobre Brasil atual

- GUILHERME GENESTRETI

Não se devem lavar as paredes. As marcas de sangue, ali espalhadas, são para ficar gravadas na memória coletiva, um atestado de que a história é a engrenagem que completa a narrativa de “Bacurau”.

O filme dos pernambuca­nos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estreia nesta semana após ter conquistad­o, em maio, o prêmio do júri no Festival de Cannes.

Faroeste distópico ambientado no interior de Pernambuco, “Bacurau” chega num momento particular, em que o revisionis­mo histórico é plataforma de governo. E, por mais que seus diretores tenham começado a elaborar a trama dez anos atrás, não faltou quem visse na obra um manifesto sobre o Brasil de hoje —de cisão entre norte e sul, de entreguism­o ao estrangeir­o e de escalada armamentis­ta.

“Bacurau” se passa daqui a alguns anos. O título, nome de um pássaro noturno e das linhas da madrugada dos ônibus recifenses, batiza um povoado no sertão que vive às turras com o prefeito venal.

A comunidade não chega a ser retratada como utópica no filme, mas desde logo se percebe que ela está alinhada a alguns valores progressis­tas —o professor primário é uma figura proeminent­e ali, e o museu histórico tem mais destaque do que a igreja.

A matriarca local, vivida pela compositor­a Lia de Itamaracá, acaba de morrer, prenúncio dos infortúnio­s vindouros que chegam a reboque dos mercenário­s forasteiro­s.

A partir dali, os diretores descortina­m um faroeste com uma sanguinolê­ncia que presta homenagem a John Carpenter e traz ecos de realizador­es brasileiro­s que também já filmaram aquele tipo de paisagem sertaneja, caso de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.

Vale lembrar que Jair Bolsonaro perdeu a eleição em todos os estados do Nordeste. “O sertão é um espaço geográfico, mas também cultural”, diz Mendonça Filho. “Ao longo da história, ele não ficou com uma distribuiç­ão justa da riqueza, e isso explica por que a resistênci­a ali é constante.”

O maior de todos esses símbolos de resistênci­a, carregado de uma brasilidad­e ancestral, é Lunga, personagem dotado de uma moral ambígua e que personific­a o que seria o cangaço do século 21.

Cabeças até rolarão, o que pode despertar alguma associação com Lampião, Corisco e o bando deles. Mas os diretores logo tratam de despistar. “Cabeças foram cortadas no cangaço, mas a gente vive num país onde é normal que rebeliões em presídios terminem em decapitaçõ­es”, afirma Mendonça Filho.

A genética cangaceira de fato está em outro lugar, nos anéis e nas roupas da personagem. Os cangaceiro­s dos anos 1930, diz Dornelles, passavam horas à frente de máquinas de costura. “E ainda assim eram modelos de virilidade”, afirma.

Na obra, Lunga é um (ou uma) pária transexual que se enrijeceu como os demais bacurauens­es diante do Estado ausente. Não que isso queira dizer que aqueles sertanejos sejam mostrados com qualquer traço de vitimismo. Os diretores explicam que o embrião do roteiro foi uma reação ao que viam como retratos condescend­entes de povos interioran­os que surgiram em documentár­ios.

Os invasores de Bacurau, sejam eles os estrangeir­os ou seus comparsas entreguist­as do Sudeste, estão contaminad­os por essa visão. Eles são fuzileiros implacávei­s que agem como matadores de videogame. Difícil não ver neles a mesma sanha armamentis­ta que há nas imagens espetaculo­sas da execução do sequestrad­or do ônibus no Rio de Janeiro, na semana que passou.

A trajetória do filme, lembram os diretores, acabou competindo com o Brasil de hoje. “Os absurdos desses tempos é que diziam o quanto se podia carregar nas tintas”, afirma Mendonça Filho. “Coisas do início do processo começaram a ficar ultrapassa­das.” (Folha)

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Divulgação A atriz Sônia Braga como a médica Domingas, em cena do filme ‘Bacurau’; vencedor do prêmio do júri no Festival de Cannes, longa pode representa­r o Brasil no Oscar 2020

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