Hospital não é delegacia
OMinistério da Saúde baixou na sexta (28) uma portaria que obriga o médico que praticar um aborto legal a constranger sua paciente, notificando a polícia sobre o procedimento e colhendo depoimentos caso a gravidez seja decorrente de um estupro.
No Brasil, vale lembrar, o aborto é permitido em situações de extrema fragilidade da grávida —caso ela tenha sido estuprada, corra risco de morte devido à gestação ou o feto seja anencéfalo.
Baixada sob o pretexto de levar segurança jurídica aos funcionários envolvidos no procedimento, a medida revela a dimensão da cegueira extremista do governo Jair Bolsonaro. Comandada de forma provisória por um militar há quase três meses, a pasta da Saúde se mostra oposta a qualquer resquício de empatia, ética ou bom senso.
A portaria acrescenta barreiras intimidadoras a uma prática que já é altamente estigmatizada. Na prática, ela deve empurrar mais mulheres para a clandestinidade e para o risco à saúde. De 2008 a 2017, vale lembrar, 2,1 milhões de mulheres foram internadas após abortarem.
Mais cruel ainda é o fato de a medida ter sido baixada dias após o caso da menina de 10 anos estuprada pelo tio desde os 6 vir a público —e a exposição desumana que ela sofreu, vinda de apoiadores do presidente, por ser submetida a um aborto legal. História semelhante, de uma menina de 11 anos esperando por quatro dias para fazer o procedimento, mostra que a desgraça é regra, não exceção.
Hospital não é delegacia. Com a medida, profissionais de saúde que já recusavam o procedimento a mulheres em pleno direito terão um motivo extra pra descumprir seu dever. O Estado não tem, nem deveria ter, essa prerrogativa.