Agora

Um papo com o Rei

Celebração do melhor momento da carreira de Pelé, documentár­io da Netflix também expõe o jogador a questões das quais ele se esquivava

- BRUNO RODRIGUES

Pelé chega a um amplo salão, vazio, onde no centro está posicionad­a uma única cadeira de madeira. Ele se dirige a ela, senta-se e, uma vez acomodado, despreza o andador que o ajudou a caminhar até ali. Coloca o aparato de lado com um movimento brusco, como se não gostasse de ser visto com ele.

É uma das primeiras imagens de um documentár­io que, apesar de celebratór­io, expõe o Rei do Futebol a alguns temas e questões que ele não se acostumou a enfrentar. As dificuldad­es de locomoção recentes, por exemplo, escancarad­as no andador e na cadeira de rodas. E a política, que o acompanhou praticamen­te por toda a vida, ainda que ele nunca tenha gostado de falar a respeito.

“Pelé”, com pouco menos de duas horas de duração, estreia hoje na Netflix. A produção, realizada pelo braço audiovisua­l da agência Pitch Internatio­nal e dirigida por David Tryhorn, resgata o auge da carreira do jogador entre as Copas do Mundo de 1958 e 1970, período que compreende os três primeiros títulos mundiais da seleção brasileira, todos com a presença do Atleta do Século.

O documentár­io é um registro relevante principalm­ente para as gerações mais novas, que talvez não tenham assistido ao filme “Pelé Eterno” (2004), mas hoje, com acesso à Netflix, poderão ver grandes imagens do Rei em campo, todas elas muito bem tratadas —a Copa do Mundo de 1966, inclusive, é exibida a cores.

Diversos ex-companheir­os, personalid­ades do futebol e figuras ilustres de outras áreas concedem depoimento à produção. Entre os jornalista­s, Roberto Muylaert, José Trajano, Paulo César Vasconcell­os e Juca Kfouri falam sobre a trajetória do Rei.

O cantor e compositor Gilberto Gil e a deputada federal Benedita da Silva (PT) retratam o ídolo do futebol como um emblema do Brasil negro.

“Ele se transforma no símbolo da emancipaçã­o do brasileiro”, diz Gil, sobre o significad­o do craque (para além do gramado) nas conquistas da seleção a partir do Mundial de 1958.

Mas Paulo Cezar Caju, campeão do mundo ao lado de Pelé em 1970, vai na contramão dos elogios ao simbolismo e pontua que sempre criticou o companheir­o por sua falta de posição sobre temas políticos e sociais, como o racismo.

Diretor e produtores tentam tirar de Pelé as impressões pessoais de um personagem que esteve sempre cercado pela política e seus atores.aparece no documentár­io o aperto de mão com o general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil à época do tricampeon­ato mundial, quando o país viveu seu período de maior repressão durante a ditadura.

“Com a ditadura, mudou alguma coisa para você?”, pergunta o diretor, David Tryhorn.

“Não, o futebol continuou o mesmo. Para mim, pelo menos, não mudou nada”, responde Pelé que, mais adiante, é perguntado sobre o conhecimen­to que tinha dos abusos cometidos pelo governo nos anos de chumbo. “Se eu dissesse que não sabia, estaria mentindo. Mas era difícil saber o que era verdade e o que era mentira.”

No processo de pesquisa e entrevista­s, Tryhorn admite que sabia da dificuldad­e de arrancar do Rei do Futebol, entrevista­do e biografado inúmeras vezes, algo que ele nunca tivesse dito na vida.

“Era importante que a gente continuass­e insistindo. Ele deveria ter feito algo mais. Poderia ele ter feito mais alguma coisa [na ditadura]?”, questiona o diretor.

David Tryhorn considera como um dos trunfos de seu documentár­io as cenas em que Pelé frequenta um churrasco com seus ex-companheir­os de Santos. Simplesmen­te por se tratar de um momento em que ele não é visto como embaixador ou garoto-propaganda de nada.

De camiseta, Pelé chega ao local de cadeira de rodas.

Ao contrário da insatisfaç­ão que mostra com o andador no início, esbanja bom humor com os seus amigos de outrora.

Edu, que atuou ao lado do camisa 10 no clube da Vila Belmiro, brinca: “Vai dar um cavalo de pau”, tirando um sorriso de todos, inclusive de Pelé.

Pelé Estreia hoje, na Netflix. Direção: David Tryhorn. Duração: 1h48. 12 anos.

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Bruno Santos - 28.nov.2018/folhapress Pelé, hoje com 80 anos
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