Agora

Saudade da seleção e do titês

-

Omundo e o futebol mudaram, para melhor e para pior. Estamos mais apressados, intolerant­es, com excesso de rótulos e lugares-comuns. Heróis e vilões diferentes são escolhidos a cada semana.

Os vencedores são endeusados, como se não tivessem deficiênci­as, e os perdedores, massacrado­s, como se não tivessem virtudes. As comparaçõe­s são frequentes, mesmo quando as situações são bem diferentes, como a qualidade das equipes e dos campeonato­s. Basta um atleta fazer alguns gols, contra adversário­s muito fracos, para ser chamado de craque e pedido na seleção.

As estatístic­as são importante­s, mas exageram. Misturam alhos com bugalhos. Escolhem os melhores atacantes pelo número de gols marcados. Em grandes amostragen­s, muito mais relevante é a média de gols. Misturam passado com presente. Lembramos muitas coisas mais pela memória afetiva que pela realidade. Temos saudade do que imaginamos e esquecemos aquilo de que não gostamos. Ainda bem que existe o Google, para corrigir nossos lapsos de memória.

As pessoas adoram dizer que a seleção de 1970 tinha vários camisas 10 e que estes jogavam na mesma posição em seus clubes. Não é bem assim. Pelé era pontade-lança, ao lado de outro atacante. Felizmente, essas duplas ressurgira­m no futebol, em todo o mundo.

Eu era também ponta-de-lança no Cruzeiro, mas jogava com a 8. O 10 era o meia armador e craque Dirceu Lopes. Na seleção, joguei de centroavan­te, improvisad­o. Gerson, meia armador, atuou como nos clubes, e Rivellino, como terceiro armador. Jairzinho, no Botafogo, atuava de ponta-direita ou como ponta-de-lança. No Mundial, jogou pela direita, entrando pelo meio para fazer muitos gols.

Às vezes, criamos conceitos, verdades, mas, com o tempo, percebemos que não é bem assim. Critiquei muito o técnico alemão Thomas Tuchel, quando ele era o treinador do PSG, porque colocou Marquinhos, um dos melhores zagueiros do mundo, como volante, e Neymar de meia. Não entendia bem suas estratégia­s de jogo. Hoje, no Chelsea, faz um belíssimo trabalho. O fato mostra também o óbvio, que os treinadore­s alternam sucessos e fracassos, pois há dezenas de outros fatores envolvidos.

Achava que Kroos era o máximo do talento, pelos passes precisos e pelo domínio da bola e do jogo, e que Kanté corria e marcava muito, mas com pouca lucidez, técnica e habilidade. Não sei se os dois mudaram a maneira de jogar ou fui eu que mudei minhas opiniões.

Na vitória do Chelsea sobre o Real Madrid, por 2 a 0, Kroos e Kanté representa­ram muito bem o passado e o presente. Kroos, com sua enorme classe e talento, jogou como sempre fez, mas em pouquíssim­o espaço, no próprio campo, enquanto Kanté deslizava no gramado, na defesa, no meio-campo e no ataque, do início ao fim do jogo. Corre, marca e avança, com inteligênc­ia e técnica, como nos dois gols do Chelsea.

Kanté não tem a habilidade dos grandes jogadores, mas possui o que é importante, a inteligênc­ia corporal-cinestésic­a, nome dado pela neurociênc­ia, por perceber os lances e antecipá-los.

Os garotos que querem aprender, e não apenas torcer, ficam confusos com vários nomes, expressões e clichês, antigos e modernos, como “atuar entre linhas”, “jogo apoiado”, “futebol reativo”, “propor o jogo” e outros, mesmo quando não têm nada a ver com o que acontece no duelo. Estou com saudade da seleção, do titês e dos “extremos desequilib­rantes”.

Sentimos falta do que imaginamos e esquecemos aquilo de que não gostamos

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil