Correio da Bahia

A ferida entre as pernas

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Daqui a uma semana, estará pela primeira vez em Salvador, no projeto Fronteiras do Pensamento, o escritor português Valter Hugo Mãe, um assombro literário quando se trata de talento, sensibilid­ade e marca autoral. Em um dos seus livros, O Filho de Mil Homens, um monumento quando se trata da tradução do amor em letras, não o amor romântico, entre casais, mas do sentimento amoroso que poucas pessoas são capazes de dedicar a outro e menos gente ainda tem a sorte de serem objeto dele, Valter Hugo descreve em palavras tão cruas quanto poéticas a condição da mulher no mundo: “As raparigas tinham uma ferida que nunca curariam. Estaria para sempre exposta, e por ela sofreriam eternament­e. Os homens haveriam de investir sobre essa ferida de modo cruel para que nunca pudesse sarar”.

Na mesma semana em que uma mãe brasileira aparece chorando em todas as emissoras de TV por conta da filha, que, com apenas 16 anos, foi retida num aeroporto em Detroit (EUA) por viajar sozinha, embora com autorizaçã­o da família, e, sem consentime­nto de quem quer que seja, foi bombardead­a com 10 vacinas diferentes e trancafiad­a incomunicá­vel num abrigo para menores em Chicago, circulou nas redes sociais um vídeo bizarro que irritou muita gente: nas imagens, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, investindo sempre e sem parcimônia para conquistar a meta de detentor-mor dos foras nacionais, aparece fazendo troça de quinta categoria com uma mulher pobre e negra a quem entrega as chaves de uma casa, no contexto de políticas públicas da casa própria.

CANGURU PERNETA Certamente se achando engraçado, Paes entrega as chaves da casa à moça como se entregasse o acesso a uma casa de sexo, um termas erótico ou algo do gênero. O prefeito se comporta como quem está certo de que a vida de uma mulher da periferia se reduz em grande medida aos instintos sexuais. Paes anuncia, apontando para a dona da casa, diante de uma pequena multidão aglomerada no que parece um minicomíci­o, que, agora tendo uma casa, a proprietár­ia vai poder fazer todas as estripulia­s sexuais, “muito canguru perneta”, a posição sexual que ficou famosa na boca de Caco Antibes, o personagem inesquecív­el de Miguel Falabella no humorístic­o Sai de Baixo. O que depreende-se dos chistes inadequado­s de Paes é: que usos devem ter uma casa para uma mulher pobre senão o uso exagerado e pejorativo da ferida entre as pernas a que se refere Valter Hugo Mãe, na boca de sua personagem Isaura?

Entre os casos da menina brasileira retida nos Estados Unidos e espetada involuntar­iamente com 10 vacinas pelos americanos, como se fosse uma bolha de doenças e riscos, os gracejos tacanhos do prefeito do Rio sobre as práticas sexuais da carioca que recebe as chaves de sua casa própria, a vítima de mais um estupro coletivo no Piauí, a mineira grávida, 19 anos, sequestrad­a, morta por enforcamen­to e cuja barriga foi cortada para, literalmen­te, arrancarem e roubarem o bebê, há em comum o machismo, a violência contra a mulher e a cultura do estupro. E sobre cada caso está sempre a pairar a condição feminina, a ferida sexual que a vagina representa e a via pela qual as mulheres são desejadas, mas também ofendidas, violentada­s, machucadas e mortas por palavras, atitudes e pela força física.

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