Correio da Bahia

Já não há surpresa, se houvesse, eu saberia

- Hagamenon Brito

Lembrei de você sem querer. Como quem encontra a aliança que estava perdida no bolso de um velho blusão jeans. Como quem tenta recordar dos traços do pai que partiu cedo demais. Como quem embaça o olhar ao ouvir Amy cantar Help Yourself na madrugada de setembro que teima em não passar, quase em slow motion.

Uma lembrança, assim, quase sem querer. Sem cocaine, sem álcool, sem paraíso artificial algum para reativar a mágoa que o tempo curou. Sem você sorrindo na fotografia afixada na porta da geladeira. Sem o teu filho para passear no parque. Sem telefonema no começo da noite para dizer como foi o dia. Sem incenso para perfumar a casa.

Eu adormecia em febre branda. Nada mais, como uma viagem sem sair do lugar. De repente, soube que você me seguia nas profundeza­s do meu silêncio. Como se fosse minha sombra, leve e sem lágrimas, quando ela foge no meio da noite pelas ruas e becos de Salvador. E, no meu sonho (terá sido mesmo um sonho?), você não tinha rosto.

Sim, minha mais agridoce amiga, você devia estar aqui ao meu lado. Nem que fosse para rever pela enésima vez os postcards de William Claxton sobre jazz. Especialme­nte aquela foto que você mais gosta - em que um negro simples e descolado entorna uma garrafa de vinho em meio a uma banda popular de New Orleans. Você sempre dizia que iríamos um dia à cidade de Anne Rice, que nosso amor seria eterno como o desejo de um vampiro por sangue.

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hagamenon.brito@redebahia.com.br

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