Correio da Bahia

Odeio esse futebol gourmet

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Segundo tempo de jogo rolando, Bahia 4x0 no Tupi numa bela noite de domingo em Salvador. Hernane toca na bola e, de repente, escutam-se vaias na Arena Fonte Nova. Será que escutei errado? Pouco tempo depois, o chiado se repete num novo toque do centroavan­te. Pronto, esse momento foi o estopim de uma “guerra” que parece mesmo ter chegado ao final: perdemos para o futebol gourmet.

Num passado não tão distante, essa cena absurda era praticamen­te impensável. Em vez das vaias, gritos de “olé” seriam escutados na Fonte. Mas não, isso infelizmen­te não pôde ser visto. O que aconteceu no final de semana passado torna-se cada vez mais presente nos nossos gramados. Deveria ser modernizaç­ão, mas acabou virando elitização. O verdadeiro torcedor de futebol está sendo deixado de lado. A turma do teatro, sentadinha como um robô, preparada para aplaudir, invadiu as arquibanca­das.

Aceitamos o modelo implantado pela Fifa para a Copa do Mundo de 2014 sem levar em consideraç­ão o lado histórico e cultural do nosso povo. Antes, era comum o time visitante só entrar em campo depois do mandante. Primeiro a festa dos donos da casa, com direito a foguetório do lado de fora do estádio, papel picado e bandeirão. Depois, vaias e alguns palavrões para os “intrusos”. No atual futebol gourmet, os árbitros puxam a fila e os dois times entram como no videogame, juntinhos e direto para escutar o Hino Nacional. Cumpriment­ar a torcida é coisa do passado.

Era normal pedir um sorvete de coco e ele chegar um pouquinho misturado com cajá. De boa, afinal, o vendedor era brother e também torcia para o nosso time. A resenha sobre o jogo rolava ali mesmo, entre um sorvete e outro. Agora, pai, esqueça. Compre seu picolé mexicano de 12 conto na velocidade, pois não tem nem espaço entre uma cadeirinha e outra para o trabalhado­r vender o produto dele. Amendoim, rolete de cana e o velho baleiro não existem mais. Se contente com hambúrguer de micro-ondas e pastel de forno.

Na Fonte, era comum ver as palminhas naquele ritmo gostoso quando o jogo parecia chato. Maneira perfeita de interagir e, quem sabe, fazer os caras acordarem dentro de campo, afinal, pagar R$ 10 no ingresso e não ver um futebol é complicado, né? Hoje, mesmo pagando R$ 30, a galera fica satisfeita só em fazer selfie e ouvir a bandinha chata tocando frevo. Oi? Mas nossos dirigentes preferem ter 15 mil pessoas comprando ingressos de R$ 30, R$ 50 e até R$ 150 do que 50 mil torcedores de R$ 10 ou R$ 15.

Posso estar até meio nostálgico, porém sou de um tempo em que a torcida jogava com o time e não ao contrário. Negros, brancos, ricos, pobres, todos misturados, se abraçando. Quantos melhores amigos eu tinha dentro do estádio? Vários que eu havia acabado de conhecer. Proibiram até a Kombi do Reggae do lado de fora. O ponto de encontro dos amigos deu lugar a um estacionam­ento nada barato. E dentro da arena ainda acham que duas latinhas de periguete por R$ 6 é promoção.

Não sou tão saudosista ao ponto de não enxergar a importânci­a da modernizaç­ão dos estádios. Sentir-se seguro é importante e ter um banheiro em condições também é essencial. Mas que tal pararmos por aí? O estádio não é e nunca deveria ser uma extensão da sala da nossa casa. Experiment­e ficar em pé no lance de perigo do seu time. Meu Deus! O senta e levanta, tão tradiciona­l, agora é recriminad­o de uma forma difícil de entender. Se for um bombadinho da academia de camiseta que estiver sentado, então, pode até dar briga.

E tudo isso aí se reflete dentro de campo. Chuteiras coloridas, cabelos cheios de gel e comemoraçõ­es com as mãos para o céu. Até provocação virou “atitude antidespor­tiva”. Tirar a camisa ao marcar um gol é pedir para tomar um amarelo. Fazer sinal de silêncio para o torcedor rival também é proibido. Ah... É quase impossível fazer sucesso se não tiver nome composto, viu? Pelé e Zico, coitados, hoje seriam Edson Arantes e Arthur Antunes. O futebol em sua essência está morrendo no Brasil. Aqui do lado, na Argentina, ele ainda sobrevive. Se você é da geração gourmet, dê uma olhadinha no YouTube que vai achar.

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miro.palma@redebahia.com.br

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