Correio da Bahia

Pequenas testemunha­s

- Clarissa Pacheco clarissa.pacheco@redebahia.com.br

Nada como um inseto para testemunha­r um assassinat­o. Ele é a fonte mais confiável para dizer quando a vítima morreu, em que local o crime aconteceu e até se drogas e algum tipo de veneno foram, eventualme­nte, utilizados no ato. E tudo o que ele precisa para sanar dúvidas de quem busca solucionar assassinat­os é de uma certa maturidade – um tempo de desenvolvi­mento em estufas de laboratóri­o, com dieta restrita, até atingir a fase adulta. Este ano, eles “testemunha­ram” 48 casos na Bahia.

O mais recente é o caso do médico Luiz Carlos Correia Oliveira, cujo corpo foi encontrado em estado avançado de esqueletiz­ação no último dia 14 (veja na página ao lado). Em geral, os insetos são capazes de passar por um “interrogat­ório” duas semanas após serem encontrado­s em cadáveres. E na Bahia, quem “traduz” as respostas dadas por eles é a equipe de Entomologi­a Forense do Departamen­to de Polícia Técnica (DPT), formada pelos peritos criminais e entomólogo­s Torriceli Sousa Thé e Vanessa Morato, além de dois estagiário­s do curso de Biologia: Ramon Lima e Paulo Davi.

“Os insetos mais comuns encontrado­s nas nossas perícias são insetos urbanos, aqueles que convivem com humanos, os chamados sinantrópi­cos”, explica a bióloga, perita criminal e entomóloga Vanessa Morato. Segundo ela, os mais comuns são espécies próprias de climas tropicais, como moscas e besouros, que compõem a chamada fauna cadavérica.

O nome pode não ser dos mais convidativ­os, mas o testemunho dos insetos é essencial para solucionar crimes. “Nós somos consultado­s, principalm­ente, para estimativa de intervalo pós-morte e, com menos frequência, para saber se houve deslocamen­to de cadáver”, explica o perito criminal, biólogo, mestre e doutor em Patologia Humana e pós-doutor em Entomologi­a Forense pela Fiocruz/Ufba, Torriceli Souza Thé.

O laboratóri­o onde eles trabalham funciona nas dependênci­as do Departamen­to de Polícia Técnica da Bahia (DPT), nos Barris, e foi inaugurado em 2007. É um dos dois únicos no país com coordenaçã­o própria na Polícia Técnica. O outro fica na Paraíba. O estado do Rio de Janeiro já teve uma coordenaçã­o própria. Hoje, no entanto, busca implantar um laboratóri­o nas dependênci­as do Instituto Médico-Legal. Quando o serviço é requisitad­o, uma das peritas da equipe, também entomóloga, faz o que pode.

DELATORES

Apesar da carência de profission­ais especializ­ados e de espaços dedicados à Entomologi­a, os bichinhos costumam ser convincent­es e fornecem respostas essenciais à resolução de crimes, especialme­nte quando não há testemunha­s oculares do fato. O nível de decomposiç­ão de um cadáver não é capaz de dizer, por si só, quando aquela pessoa morreu – mas os insetos podem.

Os bichos também são bons delatores quando, numa tentativa de despistar um assassinat­o, o corpo é retirado do local do crime e deixado em outro. Segundo Torriceli Thé, há insetos próprios de um tipo de vegetação ou área. Encontrar uma espécie de mosca típica de Mata Atlântica num cadáver localizado em uma área de vegetação de restinga, por exemplo, é um indicativo de que o crime pode ter ocorrido num local diferente de onde o corpo foi localizado.

ESSENCIAL

Em locais onde não há o trabalho da Entomologi­a Forense, quesitos como hora da morte e possibilid­ade de deslocamen­to do corpo ficam sem resposta. “Essas questões ficam como inconclusi­vas, porque os preceitos da Medicina Legal, que levam em conta a questão da rigidez cadavérica para determinar o horário da morte, foram feitos em países com clima diferente do nosso, então não se aplicam aqui”, afirma Torriceli.

O trabalho também é fundamenta­l nos casos em que o corpo está em estado avançado de decomposiç­ão. “É possível encontrar informaçõe­s genéticas no trato intestinal dos insetos, além de vestígios de alimentos consumidos pela vítima”, diz o entomólogo. Nesses casos, a entomotoxi­cologia forense é capaz de fornecer informaçõe­s sobre substância­s encontrada­s em corpos em estado avançado de decomposiç­ão, enquanto a entomogené­tica oferece perfil de DNA da vítima.

Apesar da importânci­a do trabalho, a presença do entomologi­sta forense – aquele que traduz o que diz o inseto – ainda é pouco frequente. Faltam profission­ais especializ­ados, inclusive na Bahia. Para Torriceli, o ideal seria que o laboratóri­o tivesse pelo menos quatro peritos – são dois. Mesmo assim, o laboratóri­o baiano serve de referência para uma série de trabalhos acadêmicos: nos últimos nove anos, foram quatro dissertaçõ­es de mestrado, uma tese de doutorado e inúmeros trabalhos de conclusão de curso de graduação. A parceria venceu três editais de financiame­nto.

É a parceria com a academia – no caso baiano, com a Universida­de Federal da Bahia (Ufba) e a Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública – que assegura o funcioname­nto. Foi a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) quem investiu R$ 350 mil no laboratóri­o, incluindo equipament­os e pessoal.

Insetos retirados de corpos já ajudaram polícia a elucidar 48 crimes

FRAGMENTOS

Embora contribuam para a conclusão do laudo cadavérico, os entomólogo­s raramente conhecem o desfecho do trabalho. Isso porque as informaçõe­s encontrada­s por eles são uma etapa da perícia. Eles também não são informados sobre a identidade da vítima onde as larvas ou insetos foram encontrado­s.

“Principalm­ente para ser imparcial, nós só recebemos a larva do animal e o número da perícia. Se eu vejo que tem algum dado que não está batendo e está atrapalhan­do, eu converso com o médico legista e pergunto”, explica Vanessa. Uma demanda do laboratóri­o, segundo Torriceli, é justamente conhecer um pouco mais sobre o resultado do trabalho realizado no laboratóri­o.

 ??  ?? Moscas catalogada­s após serem ‘criadas’ em estufas
Moscas catalogada­s após serem ‘criadas’ em estufas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil