Correio da Bahia

Enem: voyeurismo, Jesus, Exu e hoax

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Os brasileiro­s mais sensatos têm motivos de sobra para aplaudir o fato de o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ter trazido como tema da redação a intolerânc­ia religiosa, com quatro textos de apoio que deixavam pouca margem para os candidatos usarem o álibi de que foi um tema difícil. Mas, por outro lado, em se tratando do exame, é de se perguntar: por que emissoras de televisão, alguns de seus repórteres e, pasmem, grupos parecidos com torcidas organizada­s, ficam grudados nos portões das escolas para mostrar, entrevista­r e zoar com (caso dos grupos) os candidatos que chegam imediatame­nte após o fechamento dos portões? Se existe algum nome para isso melhor que voyeurismo elevado ao grau máximo da perversão, que seja dito.

É verdade que, para o jornalismo, a não realização da prova por aqueles que chegam atrasados será sempre uma pauta não só válida, mas importante, pois trata-se, em cada caso, de um episódio de frustração, de luto, de perda de oportunida­de, que, por trás, tem as mais diversas histórias: trânsito, chuva, distância entre a moradia e o local da realização da prova, imprevisto­s de toda ordem, mal-estar físico e até mesmo assaltos no trajeto. URUBUZICE

Não é das reportagen­s sobre os atrasados e seus motivos, suas justificat­ivas e angústias, portanto, que esse texto trata. O que se questiona aqui é a perversão inexplicáv­el e injustific­ada que explode na tela da TV no instante em que, numa transmissã­o ao vivo, para a coisa ficar ainda mais angustiant­e para o telespecta­dor, repórteres enfiam microfones e cinegrafis­tas empurram câmeras na cara de um candidato em pânico, apavorado, misturando desespero com lágrimas, enquanto clama pela compaixão de um porteiro, como se esse fosse Jesus Cristo, e, no meio desse redemoinho sentimenta­l, lhe perguntam: por que você se atrasou?

É necessário e da ordem do tolerável fazer essa pergunta no exato momento do fechamento do portão na cara de uma pessoa em pânico? O mundo acabará e a audiência irá embora se deixarem essa pobre pessoa, enlouqueci­da de frustração e angústia, respirar, ver minimament­e a ficha cair, antes de ser interpelad­a? É claro que, nesses casos, o objeto da urubuzice só chora e nada responde, ignorando perguntas, câmeras, microfones, repórteres e cinegrafis­tas. As respostas vistas na TV são daqueles que já respiraram e aceitaram a inexorabil­idade da perda. Então, para que insistir na tentativa de capturar a dor na hora em que ela está no ápice?

VAMPIROS

Neste ano, para além do imediatism­o cruel de jornalista­s, surgiu, numa dessas matérias sobre atrasados, um bando de vampiros da agonia alheia. Um grupo de rapazotes, que supõe-se sofrem de uma espécie de síndrome da atrofia da sensibilid­ade no grau máximo, fincou pé na porta de uma escola em Belo Horizonte, abastecido­s de cerveja, para fazer o inominável: zoar, fazer o máximo de barulho e de macaquices possíveis, diante de cada candidato que desse de cara com o portão já fechado. Estavam ali para se divertir como numa arena, onde cada impedido de entrar por atraso era visto como um derrotado numa batalha, alvo de urros pela turba nonsense. A série televisiva inglesa Black Mirror não faria uma tradução melhor do mundo do pós-humano.

Quanto ao tema da redação, impossível julgá-lo difícil e, ao mesmo tempo, longe de ser passível de transforma­do em crítica ao MEC de Michel Temer, do qual muitos esperavam um tema conservado­r. Do conservado­rismo esse tema passou longe, assim como a prova, que, de tão moderninha, desafiou muita gente que vive conectada, mas não sabia o que era hoax. Os alunos de escolas religiosas correm, sim, um risquinho, mínimo que seja, de desvantage­m na redação. Quem acredita que numa escola religiosa conservado­ra, por exemplo, aborda-se, com toda a naturalida­de do mundo, desde as primeiras séries, as religiões de matrizes africanas, orientais ou o judaísmo, entre outras?

Por mais que os professore­s de religião dessas escolas estejam na ponta do vanguardis­mo, a ideologia do estabeleci­mento ainda tem um peso e tanto sobre boa parte dos alunos. Sorte daqueles que tenham vindo dessas escolas e, mesmo assim, tenham podido debater com seus professore­s a religião como uma prática ligada à cultura de cada um, como algo que está fora da lógica da certa versus errada, que tenham aprendido que Jesus, Maomé, Exu, laicidade, sincretism­o e liberdade de culto estão no mesmo saco temático.

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