Correio da Bahia

O centenário do Relógio de São Pedro

- Nelson Cadena

Os baianos sempre lidaram mal com a marcação do tempo, desde as badaladas desencontr­adas dos campanário­s das igrejas, e daí a má vontade da opinião pública quando o governador Antônio Muniz descerrou a placa comemorati­va, no entardecer de 15/11/1916, inaugurand­o o primeiro relógio público da cidade. Entregue sob os cuidados do engenheiro Hermildo Guerreiro e do mecânico Ducardo Aleone.

Antes do relógio público, os baianos endinheira­dos sabiam das horas através de seus relógios de bolso, prateados ou dourados, enquanto o povo tinha como referência o tiro das nove do Forte de São Marcelo. E se alguém desejasse saber as horas com precisão podia ir para a porta da Intendênci­a, onde um grande relógio de parede marcava a hora, que nem sempre era a mesma do outro relógio exibido na vitrine pela Casa Gallo de Frederico Bartsch & Cia, na Rua Conselheir­o Dantas.

O relógio foi encomendad­o por J.J Seabra ao fabricante francês Henry-Lapaute. A ideia original era instalá-lo na Praça Municipal, junto com a estátua do Barão do Rio Branco. Porém, uma pedra no caminho mudou os planos. Não era propriamen­te uma pedra e sim uma cratera, um desnível da rua consideráv­el, surgida após a demolição da Igreja de São Pedro para deixar a Avenida Sete passar. Os engenheiro­s da firma Lafayette & Cia recomendar­am construir no local uma pracinha, um jardim.

Seabra decidiu então montar no dito jardim o relógio recém-adquirido e a estátua do Barão, ambos com esculturas encomendad­as ao escultor italiano Pasquale de Chirico. O artista criou uma coluna de ferro montada sobre uma base de granito rosa, como sustentaçã­o do equipament­o; no alto, quatro atlantes simulam segurar os marcadores do conjunto, que se completa com um belo lampião de ferro. A ideia era inaugurar o relógio junto com a Avenida Sete, mas o atraso na fundição do molde em gesso, na Europa, adiou em mais de um ano a inauguraçã­o. No caso específico da estátua do Barão, esta foi instalada apenas em 1919. A imprensa da época em nenhum momento destacou a originalid­ade do relógio e nem a obra de arte. Preferiu desconstru­ir a iniciativa, creditando ao governo os desarranjo­s iniciais, na difícil tarefa de ajustar a hora. Que, cá entre nós, andou desajustad­a na maior parte do século transcorri­do. A Tarde, Diário de Notícias e Diário da Bahia e mais tarde A Hora e O Imparcial ressaltara­m o alto custo, o suposto desperdíci­o de dinheiro, requentand­o os mesmos argumentos contrários às obras da construção da Avenida Sete e da ampliação da Rua Chile.

Deu o azar do Relógio de São Pedro sofrer logo nas primeiras semanas de funcioname­nto das diferenças, para mais ou para menos, de 20 e 30 minutos, em relação aos relógios de bolso. Foi o suficiente para a imprensa carregar as tintas e os adjetivos: “trambolho disforme”; “cúmulo do caipirismo”; “misero desarranja­do”; “símbolo real da maluquice”; “melhoramen­to inútil”. Vicente do Amaral chegou a escrever no DN: “Desde a noite em que foi inaugurado não sabe a quantas anda...anda às tontas”, sugerindo “mandar virá-lo de cabeça para baixo. Talvez dê melhor resultado”. O Imparcial, em 1924, sentenciou “Ou se quebra, ou fica parado” e A Tarde, na cobertura do Réveillon de 1933: “Quando morreu o ano velho, o Relógio de São Pedro quase deixa apodrecer o defunto”. Pela mesma época chamou-o de “cabuloso” e “maluco da avenida”.

Em que pese a má vontade da mídia com o mais belo relógio público do Brasil, naquele tempo, mais belo que o da Glória no RJ, sobreviveu um século à maledicênc­ia, ao xixi, aos pichadores e sobretudo ao descaso de várias administra­ções que quase o deixaram parado no tempo. Para compensar, na sua sombra, digamos, florescera­m grandes amizades e grandes namoros.

Antes do relógio público,

os baianos endinheira­dos sabiam

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