Correio da Bahia

O custo e o benefício

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Você acredita na sinceridad­e do arrependim­ento da Odebrecht? Muita gente está com essa dúvida. A minha resposta a quem me fez essa pergunta foi que o arrependim­ento dos pecados está no campo da religião. Aqui se trata de uma mudança de estratégia corporativ­a baseada na análise de custo/benefício. A Lava Jato elevou exponencia­lmente o custo da corrupção e tornou inútil continuar negando as evidências.

Existe a lei e a capacidade de uma sociedade de impor a todos o seu cumpriment­o, o “enforcemen­t”. É essa força que está em alta no Brasil com as operações de investigaç­ão em curso. A Odebrecht e outras empresas fizeram um movimento de sobrevivên­cia. Houve, evidenteme­nte, uma luta. A empresa negou, soltou notas indignadas, fez críticas às investigaç­ões, ameaçou, confrontou procurador­es e juízes. Por fim, perdeu. Mudou de estratégia e iniciou uma longa negociação até chegar ao ponto em que está, de reconhecim­ento dos crimes, pagamento de multa e redução dos danos e penas. A promessa é reconstrui­r as normas internas e fazer negócios com outra lógica. Diante disso, o que faz o sistema que foi mais beneficiad­o com a velha ordem? Reage. É o que os políticos estão fazendo. Quando o juiz Sérgio Moro disse que esta não é a hora certa para discutir uma lei de abuso de autoridade é porque ele teme que a lei vire biombo para camuflar outro objetivo. Em vez de ser um projeto para aperfeiçoa­r a democracia, o que se tenta na Câmara e no Senado é conter as investigaç­ões.

Seria ingenuidad­e, ou outro motivo bem menos nobre, não admitir a coincidênc­ia cronológic­a dos eventos. Acontece justo agora quando a Lava Jato avança e chega no que pode ser a maior lista de políticos citados na operação. O PT, o mais atingido dos partidos, votou em peso no projeto que desvirtuou as medidas anticorrup­ção, e a coalizão uniu partidos que são inimigos nesse tempo conflagrad­o de polarizaçã­o. O senador Renan Calheiros, com sua dezena de inquéritos, e agora um processo em que é réu, tenta legislar em causa própria quando propõe a aprovação do seu projeto que chama de “abuso de autoridade”. Quem viu a sessão de quarta-feira, em que ele forçou a barra e passou por cima dos procedimen­tos, tentando aprovar o requerimen­to de urgência para a votação do que fora aprovado na Câmara, aprendeu na prática o que é abuso de autoridade. Contudo, o plenário o derrotou. Na próxima terça-feira, tentará votar o seu projeto.

Há, tanto em um quanto em outro projeto, o mesmo erro de ameaças subjetivas. No do Senado, há a sentença de prisão de um a quatro anos a quem “ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem” da pessoa indiciada. Ninguém vai defender o oposto, mas o indiciado pode incluir até o ato de prisão ou as necessária­s investigaç­ões como ofensa a sua intimidade, vida privada, honra ou imagem. No projeto que tramita na Câmara fica estabeleci­do que é crime um juiz “proceder de forma incompatív­el com a honra, a dignidade e decoro de suas funções”. De novo a subjetivid­ade. Há uma sucessão de exemplos. Em alguns casos confunde-se o abuso de autoridade com o exercício das funções. O temor expresso pelo juiz Sérgio Moro é de que seja punido o juiz que tiver sua sentença reformada em instância superior, quando essa é a lógica da Justiça e para isso existe o sistema recursal. Moro sugeriu um artigo simples.

“Não configura crime previsto nesta lei a mera divergênci­a na interpreta­ção da lei penal, ou na avaliação de fatos e provas”. Isso evitaria a distorção da lei. Foi recusada liminarmen­te pelos parlamenta­res.

A questão é: por que procurador­es e o juiz da Lava Jato têm que estar na defensiva quando o trabalho deles levou a maior empreiteir­a do país a reconhecer seus erros e a se compromete­r com novas práticas? Se a Lava Jato estava certa com relação à Odebrecht e em relação a outras empresas e pessoas que exerciam poder, por que mesmo os procurador­es e o juiz precisam se explicar e se defender? Se o contra-ataque dos políticos funcionar, nem a Odebrecht e nem qualquer outra empresa terão que mudar a conduta, porque os custos da corrupção voltarão a ser baixos. E tudo voltará a ser como antes, amanhã.

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miriamleit­ao@oglobo.com.br

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