Torcida única, um tiro no pé
“Pipes of peace” é uma música de Paul McCartney inspirada em um episódio que ficou conhecido como a Trégua de 1914 - quando, em plena Primeira Guerra Mundial, soldados ingleses e alemães, na véspera do Natal, interromperam temporariamente o conflito para uma confraternização, culminada com um jogo de futebol entre os combatentes dos dois países. O esporte sempre foi um meio de interação entre as pessoas, um instrumento de paz.
Foi assim também em 1969, quando o Santos de Pelé parou as guerras do Congo e da Nigéria. A paz reinou para que as pessoas pudessem apreciar o melhor jogador do mundo. Em 2004, foi a vez da Seleção de Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho comover o combalido Haiti, que deixou de lado um conflito interno, embora por pouco tempo, para ver os craques brasileiros no “Jogo da Paz”.
Nos últimos anos, em alguns lugares do Brasil, vem ocorrendo um movimento em sentido inverso: o futebol está sendo utilizado para afastar pessoas pelo simples fato de torcerem para clubes diferentes. Minas Gerais e São Paulo passaram a realizar clássicos com “torcida única”, sendo permitida a presença de torcedores só dos times mandantes.
Eis que, lamentavelmente, essa ideia chegou à Bahia. Na semana passada, após o falecimento do jovem Carlos Henrique Santos de Deus, torcedor do Bahia que tinha ido à Fonte Nova assistir ao jogo contra o rival, o Ministério Público do Estado propôs a Bahia, Vitória e Federação Bahiana de Futebol que os próximos quatro clássicos ocorram com torcida única.
Respeito muito o trabalho do Ministério Público, fundamental em um sistema democrático, mas essa medida é absolutamente anacrônica, bem como totalmente desprovida de qualquer estudo científico que ateste a sua eficácia. Evidente que o direito à vida é um bem inestimável e que, claro, merece toda proteção pelo Estado. Contudo, é indispensável analisar de maneira ampla os episódios de violência atrelados ao esporte, que vêm aumentando no Brasil desde a década de 90, para perceber que impedir o encontro e a convivência de torcedores rivais numa praça esportiva pode até mascarar a realidade, mas está longe de ser a solução. Nos estados onde esse sistema foi adotado, já se discute a abolição, pois conflitos entre falsos torcedores continuaram a ocorrer nos dias de jogos.
É indiscutível e de amplo conhecimento que os graves conflitos ligados ao futebol, cada vez mais com ocorrência fora dos estádios, são causados por alguns poucos indivíduos que se travestem com camisas dos clubes e utilizam dessa “fantasia” para se digladiarem. Isso não tem nada a ver com o futebol. É um problema sério de segurança pública e não reflete o espírito de 99% dos verdadeiros torcedores, que buscam o esporte como forma de entretenimento.
Não são os torcedores de verdade que precisam ser combatidos ou impedidos de participar de espetáculos esportivos, mas sim aqueles que malferem o esporte, utilizando-o como desculpa para praticar atrocidades.
Mas por que isso ocorre? Simples. Basta ver quantos desses “torcedores” – e são sempre as mesmas pessoas – foram presos, processados, julgados e severamente punidos. A ineficiência no combate e na punição é um convite à adoção desse modus operandi do crime. É preciso que esses indivíduos sejam tratados com rigor e que punições efetivas aconteçam.
Foi assim, com implementação de legislação específica, forte trabalho de inteligência e aplicação severa das leis, que a Inglaterra conseguiu controlar os famosos hooligans. Lá, a Premier League não só permite que o torcedor do clube visitante vá ao estádio, como incentiva que isso ocorra, tendo sido estabelecido até limite de preço para ingresso dos visitantes, com objetivo de estimular a presença.
Ou seja: é evidente que há meios de combater a violência atrelada ao esporte - na realidade, um problema social – que não seja simplesmente segregando torcedores e impedindo o convívio das pessoas. Fazer isso é atestar a falência completa do Estado. Pode até ser a medida mais cômoda, mas nem de longe é a mais eficiente. Não adianta mascarar a realidade. De nada adianta tratar o sintoma se a causa da “doença” não é investigada e combatida.