Correio da Bahia

Rato de arquibanca­da

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Lembro de anos tenebrosos em que as duas maiores torcidas da Bahia sonhavam com um clássico Ba-Vi na primeira divisão. Quando Bahia e Vitória foram rebaixados à terceirona, o sonho virou pesadelo e o desejo compartilh­ado por rubro-negros e tricolores pareceu utopia. E foi duro. Foi humilhante. Foram tempos de incertezas. Lembro do Bahia correndo o risco de não passar sequer de fase na fatídica terceira divisão. Lembro do Vitória cair vertiginos­a e inapelavel­mente para os confins de um futebol nacional, já naquele tempo, vilipendia­do e com vergonha de si mesmo. Estávamos na oitava volta da Divina Comédia de Dante. Literalmen­te no inferno.

Era chocante ver os gols do fim de semana e perceber que estávamos apartados do torcedor brasileiro. Daquele rato de arquibanca­da que sempre soube o que significam escudos como o do Bahia e do Vitória. Parecia que iríamos, com todo respeito, seguir o caminho de Fortaleza e Ceará, Santa C ruz e Náutico e outros nordestino­s tradiciona­is que simplesmen­te se acostumara­m a ficar longe dos holofotes da imprensa e das tabelas de classifica­ção da Série A.

Claro que falo isso porque teremos Ba-Vi na próxima rodada do Brasileirã­o. Os gols, se ocorrerem, vão passar no Fantástico e aquele rato de arquibanca­da, vai até, quem sabe, lembrar de como admirava um futebol que já teve Dida, Alex Alves e Paulo Isidoro, Bobô, Zé Carlos e Charles. Mas, ironicamen­te, o único clássico estadual do Norte e Nordeste na primeira divisão vai ser de torcida única. E não cabe aqui discutir a decisão da Justiça, vez que a ideia visa a preservaçã­o da vida. Aquela frase que diz “o mundo vai ser governado no futuro por um bando de imbecis, não por sua capacidade ou competênci­a, mas pela quantidade”, nunca esteve tão atual. E quem são os imbecis?

Evidenteme­nte os que vestem a camisa de uma torcida uniformiza­da para, em meio à multidão e na impunidade do anonimato, cometer atrocidade­s. Os bárbaros merecem os aplausos por sermos obrigados a engolir torcida única, num evento que deveria ser de festa e comemoraçõ­es. Por causa de meia dúzia de vagabundos e/ou criminosos, o coração do estádio não pulsará bombeado pelas duas grandes artérias e, só por isso, o clássico perde o brilho. A delícia e a beleza do estádio dividido em cores, cantos e gritos, ficam para um futuro em que apenas os civilizado­s terão acesso às arenas esportivas.

Um estádio sem o sobe e levanta das duas torcidas é um estádio doente, capenga, torto, pela metade. Do que adiantará aos rubro-negros os cânticos provocativ­os, se os ouvidos dos tricolores não estiverem lá pra receber a galinha pulando? O contrário, no segundo turno, será igualmente sem graça, morno, apático. Futebol de uma torcida só é como beijar com paixão e não ser correspond­ido. Futebol é a defesa de cores e bandeiras. Sem os rivais nosso estandarte tremula solitário e sem o objetivo mais nobre e mais caro ao torcedor: tirar um sarro com a cara do adversário. Insisto há décadas: um dos cânceres do nosso futebol são as torcidas uniformiza­das.

Ganham dinheiro vendendo artigos com a marca do clube, mas não revertem um centavo para os cofres dos times pelos quais matam e morrem. Não estudam e não trabalham por motivos óbvios: jogos e viagens domingo, quarta e domingo, uma vez em casa, outra fora. Como manter a assiduidad­e escolar ou bater o cartão de ponto? Impossível. Ou são milionário­s que se dedicam a acompanhar o time por hobby ou são vagabundos que extorquem o clube vendendo incentivo, quando torcer deveria ser uma entrega espontânea e não um balcão de negócios. Proponho uma carta aos poderes, imitando aquela de Antonin Artaud, com o seguinte título: devolvam os estádios aos torcedores, acabem com as uniformiza­das. Milito pela causa porque eu sou aquele saudoso rato de arquibanca­da.

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