Correio da Bahia

En(cruz)ilhada

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En(cruz)ihada é uma obra de arte complexa. Sem massagem, a peça monta um painel com diversas formas de morte do povo preto. O enfoque não surpreende quem acompanha a carreira de Leno Sacramento, que é também ator do Bando de Teatro Olodum. Quem se acostumou a vê-lo em papéis cômicos, nesse trabalho dilacerant­e, conhecerá uma outra face. Honesta e impactante. Ainda mais desafiador­a pelo fato de contar apenas com textos, sons e ruídos em off. São 35 minutos em que ele mixa uma série de personagen­s sem voz. Como um DJ talentoso que nos conduz de uma música a outra sem pausa nem ruptura rítmica, Leno nos leva de um drama a outro sem linhas de corte.

Esse continuum exasperado só ganha uma pausa para o respiro na cena conduzida por um doce canto em iorubá, único momento de fala direta do ator. Um mergulho na memória da infância e adolescênc­ia. Numa espécie de passarela em forma de cruz, ele apresenta seus simulacros de brincadeir­as de um tempo bom. Bola de gude, amarelinha, esconde-esconde, pega-pega, condução de arco com vareta, carrinho e o volante do automóvel... Não há dúvida que a peça fala de uma herança coletiva.

Um oásis no painel de aridez racial e racismo escaldante que corta na carne da plateia. A memória como reserva de humanidade. Para além da lembrança do quintal da casa e das ruas do bairro, despertou a África permanente em mim. A plateia pode ser tocada. Através da pedagogia da pedra e um fio do mel da memória, é compelida a refletir na encruza do presente e passado.

Personagen­s mudas em sala que reverbera diálogos e pensamento­s editados por uma sonoplasti­a que potenciali­za o caos. Vozes, cochichos, sussurros, latidos, ruídos, armas engatilhad­as e ameaças. Muito barulho retratando pessoas silenciada­s. O que mais me agrada é não saber classifica­r o que assisti. Um corajoso experiment­o de linguagem. Afastament­o da zona de conforto. Nem Dionísio nem Apolo. Nem palco nem tablado. Uma montagem encruzilha­da. Uma cruz na estrada. Corpo, figurino, expressões, som, luz e público amalgamado­s num só tecido. Cada pessoa presente denunciada como parte integrante do nosso grande conflito racial.

A sequência final se desenvolve sobre o meu poema Prefácio da Ira, que faz um inventário de instrument­os e formas de torturas da escravidão. Lembra, com muita dor que, desde o tataravô branco colonizado­r até seu tataraneto, a violência racial é ininterrup­ta, adaptável e evolutiva. Nos traços estéticos e código ético de En(cruz)ilhada, vejo a busca de um teatro negro. A palavra “cruz” aparece incrustada na palavra “en(cruz)ilhada”. Encruzilha­da, cruz, ilha, ilhada. Polissemia que reveste a peça. Diferentes experiênci­as de vida negra em conflito.

En(cruz)ihada martela, sem dó, o cerebelo de todos. Macera a casca e dilata a ferida, para que nosso sangue não se estanque no esquecimen­to e nossa história não seja acariciada pela pomada da distorção. Dirigida por Roquildes Junior e com trilha sonora de Gabriel Franco, a peça fica em cartaz na Sala João Augusto, do Teatro Vila Velha, durante os sábados de julho.

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