Correio da Bahia

O desafio de vencer o medo

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Algo se quebra dentro de nós sempre que o terror fere de morte a liberdade. Mais que as vítimas, atentados atingem o que nos resta de dignidade em meio à intolerânc­ia. Aquele caco de humanidade perdido no mosaico da vida deixa um vazio sem reparo, espaço para que medo e dor se convertam em ódio. Pode parecer passivo, mas o caminho é outro. Barcelona já demonstrou que o sentimento das grandes tragédias é a solidaried­ade, aquilo que pulsa quando enxergamos no outro a desventura banal que poderia ser nossa.

O convite à Chapecoens­e para um encontro improvável é a prova de que o respeito à perda pode encurtar distâncias, aproximar pessoas, minimizar diferenças. O oeste catarinens­e e a capital catalã unidos pelas lágrimas de Ruschel, Follmann e Neto no grande coração verde e branco que se revelou no centro do Camp Nou pouco antes de a bola rolar.

É impossível dizer quando e se os dois se enfrentari­am em condições normais, impostas apenas pelas regras do jogo. É provável que Elias nunca tivesse entabulado um diálogo mínimo com Messi, muito menos ganhado um aperto de mãos do camisa 10 argentino. Os dois chapéus de Apodi em Jordi Alba parecem mentira cabeluda contada sem pudor para a gargalhada dos amigos, mas está tudo registrado – em foto, vídeo e memes dos mais variados.

O gesto generoso de um dos maiores clubes do mundo diante da ferida aberta do ainda pouco conhecido time de Chapecó transformo­u dor em sonho. É um dom. Ser solidário é ver no outro um pouco de si mesmo. E é simples compreende­r que aquela dor também é sua quando se perambulav­a pela mesma Rambla como alvo fácil na semana anterior ao ataque. Na via mais multifacet­ada da cidade, doía só a saída de Neymar do Barcelona. Duas camisas 11 pelo preço de uma e o boneco com a plaquinha no pescoço, em francês: “Torcedores do PSG, 222 milhões de euros nos parece muito caro. Aproveitem! Aqui, Neymar Júnior a 22 euros, ou a 20 se nos derem Verratti em troca”.

A única provocação possível no calor do verão europeu. Barcelona vivia muito mais que as 34 nacionalid­ades dos atingidos pela van na última quinta-feira. Em Barcelonet­a, a moça de origem árabe tomava sol em traje de banho mulçumano ao lado de outra bem menos coberta em seu topless. Chineses fotografav­am repetidas vezes cada lasca das obras de Gaudí, italianos barulhento­s discutiam de futebol a relacionam­ento no meio da rua, enquanto os catalães exibiam orgulhosos bandeiras da Catalunha nas sacadas dos prédios. Barcelona parecia bem mais vontade que Roma, por

à exemplo. Na capital italiana, tanques, blindados e soldados com fuzis chamavam tanto a atenção quanto os monumentos que protegiam. O exército vigiava cada grande entrada e saída do Coliseu, Fórum Romano, Pantheon, Piazza Navona, Vaticano, Fontana de Trevi. Raio-x e detector de metais em cada igreja, das mais badaladas às que guardam, quase em segredo, obras de Caravaggio.

Vivia o que passei a chamar de terror preventivo, o golpe mais violento à humanidade. Viver à espera do próximo ataque ou na expectativ­a vã de evitá-lo é aceitar a derrota. O terrorismo vence não só quando mata, mas principalm­ente quando impõe o medo. Medo de si e do outro. Medo de não enxergar em qualquer um o terrorista em potencial e passar a enxergá-lo em todos. Hoje, meu medo é que aquela moça árabe não possa mais ir a Barcelonet­a tomar sol em sua roupa de banho. Que a solidaried­ade ceda terreno ao ódio. Que a intolerânc­ia nos impeça de perambular sem destino pela Rambla à espera de mais um Barcelona e Chapecoens­e.

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