Correio da Bahia

Você já foi à Nigéria, nego? Não? Então vá!

- Hagamenon Brito* hagamenon.brito@redebahia.com.br

sas inimagináv­eis foram acontecend­o de lá para cá. Revoluções significat­ivas no campo das relações sociais, da compreensã­o sobre a sexualidad­e, a cidadania. Várias coisas mudaram. Há 40 anos, as sociedades ainda eram muito obedientes a regras, a conceitos firmados a partir das religiões. Houve uma mexida grande. Não acho que haja retrocesso, porque tudo caminha junto, coisas boas e ruins. Acha que não avançou nada em 40 anos? Avançou. A mortalidad­e infantil, por exemplo, regrediu. Crianças morrem menos, no entanto ainda é uma coisa séria, uma dificuldad­e grande em vários lugares. Elas são afetadas por males que não existiam antes, do ponto de vista da psicologia e psiquiatri­a. Tudo isso avançou muito, ao mesmo tempo problemas novos dão a impressão que retrocedeu. Hoje, na minha meditação, surgiram elementos de contato muito fortes entre vida e morte, no sentido de que a minha percepção ali, naquele momento, é de que eu estava ao mesmo tempo vivendo e morrendo. Quando a gente se entrega suficiente­mente à contemplaç­ão do ser, a gente vê a totalidade. Tudo é tudo, nada é nada e estão juntos o tempo todo. A finitude em relação a estar vivo, agora, e isso ter que terminar em algum momento, nos leva a imaginar que uns tantos momentos atrás, no meu caso 75 anos, eu não estava aqui. Na Terra, com carne, com osso. Isso tudo não existia. O fato de não existir de novo não pode surpreende­r ninguém, porque todo mundo já não foi. Então tudo não será. A vida é trágica, mas eu consigo deslocar meu pensamento para esse plano [da leveza]. Há três horas, tudo isso estava presente na minha meditação. Rezei para que o bem ganhe seu espaço. Que o sofrimento seja mitigado pela beleza, pelo amor, pela amizade, pelo encantamen­to... Então, é isso. Eu rezo, vivo rezando. Gilberto Gil, 75 anos, é mais do que um cantor e compositor de música popular. É um pensador, também, expondo ideias sobre ancestrali­dade e questões sociais, científica­s, afetivas e filosófica­s em muitas de suas canções. A sua percepção do mundo e do seu tempo transcende a música como a de nenhum outro compositor de sua geração no Brasil. Formada por Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979), a chamada trilogia Re é um bom exemplo do Gil músico e pensador ao mesmo tempo. Em Refazenda, disco que reúne pérolas como Ela, a faixa-título, Tenho Sede (Anastácia e Dominguinh­os), Pai e Mãe, Jeca Total, Retiros Espirituai­s, O Rouxinol e Lamento Sertanejo (parceria com Dominguinh­os), ele retomou suas raízes rurais e relembrou o sertão usando novos instrument­os e tecnologia­s, como o violão ovation e novos pedais. Em 1977, depois de uma viagem a Lagos, na Nigéria, para participar de um festival de arte e cultura negra, o cantor mesclou a sua ancestrali­dade africana (Balafon, Babá Alapalá) com baianidade (Ilê Ayê, Patuscada de Gandhi) e brilhou em questões afetivas (Sandra) e rítmicas (o reggae em Norte da Saudade e a versão suingada da bossa Samba do Avião, de Tom Jobim), sem esquecer de aspectos existencia­is (as lindíssima­s Aqui e Agora e Era Nova) e das contradiçõ­es sociais envolvendo o negro e o pobre brasileiro em um país que crescia e sofria sob a ditadura militar: "A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH". Um apartament­o do BNH, hoje, seria um imóvel do programa Minha Casa, Minha Vida. Álbum de conscienti­zação de sua herança afro, Refavela é a obra-prima da trilogia Re, que seria fechada com Realce, onde Gil cantava a beleza e o empoderame­nto em ritmo de disco funk na faixa-título e seguia a louvar o velho e o novo.

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