Correio da Bahia

A morte que reclama por atenção

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Janaína Silva de Oliveira e Daniela Bispo não se conheciam. A primeira era corretora de imóveis e morava no Barbalho. A segunda, jornalista por formação, trabalhava em uma empresa de call center na Avenida Tancredo Neves. A ligação entre as duas mulheres surgiu apenas na morte. Em um intervalo de quatro dias, ambas foram cruelmente assassinad­as por homens que partilhava­m sua intimidade e que, por isso mesmo, as considerav­am propriedad­es pessoais. O motivo que levou os algozes de Janaína e Daniela a cometerem tamanha brutalidad­e não é novidade. Ele existe desde a antiguidad­e, mas só agora, após séculos de incansável batalha, teve identidade própria reconhecid­a e disseminad­a: feminicídi­o.

Em definição sintetizad­a, o termo passou a ser utilizado para classifica­r o tipo de homicídio praticado contra o gênero feminino. Ou, de acordo com a ativista e escritora sul-africana Diane Russel, uma das primeiras a usar a expressão, trata-se da “matança de mulheres por homens, porque elas são mulheres”. Embora tenha conquistad­o espaço no cotidiano, a palavra feminicídi­o ainda encontra resistênci­a para se consolidar como realidade intangível, sobretudo pelos resquícios de uma sociedade machista que insiste em repetir as mesmas condutas de tempos atrás.

As redes sociais estão aí para comprovar. Nas discussões desencadea­das após os dois recentes feminicídi­os registrado­s em Salvador, porta-vozes do direito à posse inalienáve­l sobre as mulheres invadiram arenas – em muitos casos, para as quais não foram convidados – somente para defender o indefensáv­el. Uns tripudiara­m das vítimas ou daquelas que tiveram a coragem de cobrar maior rigor da Justiça e dos homens, atribuindo a elas o rótulo de feministas mal-amadas. Outros se eximiram da culpa, como quem diz “eu não sou como esses bárbaros”. Talvez por não compreende­rem que esse tipo de crime, não raro, começa em uma cantada inconvenie­nte e acaba na morte.

É óbvio que nem todos os homens são capazes de avançar o sinal vermelho preestabel­ecido pelas leis ou pelo código moral, que varia segundo a cultura. Muito menos assassinar uma companheir­a por não tê-la mais em seu convívio. O que, no entanto, não significa absolvição de responsabi­lidades, mesmo as mínimas. O comportame­nto machista é o resultado final do feminicídi­o, mas antes é a origem de todos os problemas enfrentado­s pelas mulheres, da falta de espaço na política à diferença de status no mercado de trabalho.

Se alguém pensa o contrário, então deveria ter também, além do fundamenta­lismo religioso, explicação melhor para justificar o que faz um gênero se sentir superior ao outro após milênios de conhecimen­to. O grande nó está justamente na pouca atenção dada às chagas vivenciada­s pelas mulheres no sistema educaciona­l desde a infância, nas políticas públicas em todos os poderes e dentro de casa, onde os valores se consolidam, sejam eles bons ou maus. Mudar esse quadro demanda diálogo urgente entre todos os atores da sociedade. Fechar os olhos é que não dá.

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