Correio da Bahia

Um ano dividido em dois

-

Levará tempo para compreende­r com precisão o ano que se encerrou no domingo passado e seu papel na cronologia recente do país. Tal tarefa só será concluída de modo correto após o necessário distanciam­ento histórico. No entanto, há elementos suficiente­s para afirmar que, do início ao fim, 2017 foi marcado por dois ciclos diametralm­ente opostos. Enquanto ocorriam avanços significat­ivos nos mais variados campos, os retrocesso­s seguiam no mesmo compasso, aqui e lá fora.

No ano que andou para frente, a crise econômica perdeu força. Ao contrário de 2015 e 2016, o Brasil conseguiu ver os primeiros sinais claros de retomada do cresciment­o, apesar da turbulênci­a deflagrada pela controvers­a delação dos donos da JBS, os irmãos Wesley e Joesley Batista. Com apenas um ano no cargo, o presidente Michel Temer parecia fadado a descer os degraus do poder, assim como sua antecessor­a, Dilma Rousseff. Tão impopular quanto a petista, Temer balançou, mas não caiu.

A razoável estabilida­de política conquistad­a em 2017, sobretudo a partir do segundo semestre, ainda é frágil, embora tenha desapareci­do do horizonte o caos que dominou a agenda nacional nos dois anos anteriores e invadiu parte do atual. O temor de uma “venezualiz­ação” do Brasil foi sepultado e substituíd­o pelo debate sobre a urgência de levar adiante reformas fundamenta­is para reestrutur­ar o país. Nesse âmbito, o adiamento das mudanças no regime previdenci­ário é ponto fora da curva.

Na lista de avanços obtidos, o levante das mulheres contra o assédio sexual merecerá, sem dúvida, lugar especial na história. Pela primeira vez, elas romperam o silêncio e desnudaram os abusos cometidos há décadas por figurões da mídia e do entretenim­ento, outrora intocáveis. No Brasil, a denúncia pública da figurinist­a Susllem Tonani contra o ator José Mayer, da TV Globo, acendeu o estopim da campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”.

Em escala global, estrelas de Hollywood abriram a caixa de Pandora que mantinha em segredo os ataques sexuais cometidos por poderosos da indústria cinematogr­áfica, de Harvey Weinstein a Kevin Spacey, de Dustin Hoffman a Ben Affleck. O “#MeToo” virou uma onda irrefreáve­l e estimulou diversas outras atrizes a escancarar a vida oculta de seus predadores.

O ano que andou para trás trouxe de volta o fantasma da censura e da patrulha conservado­ra. Ataques a exposições e performanc­es, como a Queermuseu e a La Bête, se sucederam ao longo de 2017, com ampla adesão de segmentos da sociedade de matiz religioso. De maneira impensável para um país que se orgulha de sua redemocrat­ização, vozes em defesa do regime militar saíram das sombras e encontrara­m eco nas novas gerações, formada por gente que sequer tem noção exata do que foram os anos de chumbo.

O 2017 do recuo reacendeu também os temores de uma guerra nuclear em escala global, com as tensões provocadas pelos movimentos do ditador sul-coreano, Kim Jong-un, e suas promessas de hecatombe. Do lado ocidental, o pânico é alimentado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, certamente o mais controvert­ido chefe da maior potência mundial, que assumiu em 20 de janeiro trazendo na bagagem o recrudesci­mento da intolerânc­ia mundial e do antiambien­talismo. Pelos próximos 358 dias, o novo ano que começou vai crescer e findar-se, quem sabe, como mais avanços e menos retrocesso­s.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil