Correio da Bahia

Artistas e amigos lamentam a morte do escritor

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com pouca tolerância para com individual­ismos. As esquerdas viam Cony com desconfian­ça, apesar de seus livros saírem por uma editora sobre a qual não restava a menor dúvida: a Civilizaçã­o Brasileira, de Ênio Silveira, um homem ligado ao Partido Comunista. Ênio podia não concordar com Cony quanto à linha apolítica e alienada que imprimia a seus romances, mas não abria mão de tê-lo entre seus editados. “Cony era talvez o maior escritor profission­al do Brasil - produzia um romance por ano, firmara um público certo e não dava bola para os críticos”, escreveu Ruy Castro no final dos anos 1990.

DITADURA E POLÍTICA

Em 1967, porém, Cony lançaria um livro seminal em sua trajetória: Pessach, a Travessia, sobre um escritor carioca que, em pleno regime militar, rejeita qualquer tipo de posição política mais radical, assim como renega sua origem judaica. Pouco depois de completar 40 anos, ele se compromete­u, involuntar­iamente, com questões políticas. O livro continha crítica dura ao Partido Comunista.

Em 1999, o autor voltaria ao tema com Romance Sem Palavras, no qual continuava a história do escritor Paulo. Em entrevista ao O Estado de S. Paulo em 2008, Cony relembrou o período da ditadura ao falar do romance O Ventre - e tratar da melancolia e do pessimismo que são normalment­e associados à sua obra, influência, naquele instante, do pensamento de Sartre.

“Havia nessa época um tom exagerado de bossa nova, de desenvolvi­mento, que não me encantava. Da mesma forma que não aderi à literatura engajada que surgiu depois da Revolução de 1964, mesmo depois de preso pelos militares. Nessa época, escrevi Antes, o Verão, um romance completame­nte alienado, sem nenhuma referência política, assim como Balé Branco, que veio em seguida. Mesmo Pilatos, que saiu em 1973, quando a situação continuava difícil. É curioso que alguns críticos entenderam ao contrário, identifica­ndo o homem castrado do romance como uma alusão ao que viviam os cidadãos, alijados politicame­nte. Mas não era nenhuma metáfora para mim. Minha crítica aberta estava nos textos que escrevia para os jornais, especialme­nte o Correio da Manhã”, disse.

A CADELA MILA

Pilatos é ainda hoje considerad­o por muitos o grande livro de Cony - inclusive pelo próprio autor. Lançado em 1973, narra a história de um homem que, após sofrer um acidente, vaga pelas ruas do Rio com o órgão sexual mutilado em um jarro, encontrand­o diferentes personagen­s pelo caminho.

Intelectua­l cético e meio cínico que foi casado cinco vezes e teve três filhos, o escritor construiu uma imagem pública de rabugento e pessimista, mas os amigos dizem que ele até se divertia com isso.

Na verdade, o mestre Cony era um homem lírico capaz de escrever que nunca amou e foi amado por alguém como por a cachorra Mila, com quem conviveu por 13 anos e a quem dedicou uma emocionant­e crônica de despedida. Escritores, amigos e artistas lamentaram a morte de Carlos Heitor Cony (1926-2018). “É sempre lamentável quando morre um jornalista e escritor da relevância do Cony. A gente está perdendo uma geração... É uma pena. Livros como Quase Memória e O Piano e a Orquestra são muito importante­s”, disse Milton Hatoum.

“Primeiro que eu gostava muito dele como amigo. E, para a minha geração, ele foi um jornalista e escritor muito importante. Com o livro O

Ato e o Fato ele enfrentou a ditadura e tudo aquilo que esmagava a gente. Ele mostrou que era possível resistir escrevendo”, afirmou Inácio de Loyola Brandão.

“Eu lamento muito, gostava da obra e dele pessoalmen­te. O bom é que ele foi ativo até o final. Um intelectua­l rigoroso que vai fazer muita falta”, escreveu Luis Fernando Verissimo.

“Para a minha geração, criada nuns restos de beletrismo, Cony foi, com O Ventre, romance de estreia, a revelação de uma saudável literatura de maus modos. Depois, o jornalista que se opôs de bate-pronto ao golpe. Parecia morto para a literatura quando, em 1995, ressurgiu com Quase Memória, romance forte e tocante, e a ela permaneceu fiel até o fim, deixando sua marca não só na ficção como na crônica”, disse Humberto Werneck.

“Ele conjugava humanismo com uma sólida formação intelectua­l. Também tinha uma sólida formação teológica, mas se dizia incrédulo. Eu acho que ele tinha uma certa ‘nostalgia de Deus’. Mas tem uma história que eu gostaria de contar. Nós conversáva­mos muito sobre cachorros. Ele tinha uma paixão por uma cadelinha que se chamava Mila. Cony dizia: ‘Nunca amei tanto como amei minha Mila. E eu nunca fui amado por alguém como ela me amou’. O livro Quase Memória se deve a Mila também. Cony, que estava há muitos anos sem escrever, notou que ao pressionar as teclas da máquina de escrever, ele apaziguava as dores da cachorrinh­a que estava doente. Era como se ela dissesse: ‘Escreve, Cony; escreve, Cony...’”, afirmou Nélida Piñon.

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