Os senhores das armas
O cidadão brasileiro, sem saber e sem consentir, pagou a bala que matou a vereadora carioca Marielle Franco. Desviados de um lote que tinha como destino a Polícia Federal, os três cartuchos de nove milímetros que atingiram a cabeça de Marielle e a tornaram mais um número nas crescentes estatísticas de execuções no país foram adquiridos, em última instância, pelo bolso do contribuinte. A certeza torna mais dolorosa ainda a comoção gerada após o assassinato da ativista negra e expõe o tamanho do descontrole sobre a fabricação e circulação de armas e munições de uso restrito das forças de segurança no território nacional.
As mesmas balas produzidas por uma fornecedora das polícias brasileiras estavam na origem da maior chacina já registrada no estado de São Paulo, onde 17 pessoas foram mortas na madrugada de 13 de agosto de 2015 em Barueri e Osasco. Também deixaram um rastro de assassinatos na guerra entre facções rivais do narcotráfico do Rio de Janeiro. Pelo histórico, é bem provável que continuem a multiplicar os mortos do crime organizado. Prova da existência de falhas substanciais na política de desarmamento adotada há aproximadamente duas décadas.
Limitar o número de armas em posse do cidadão comum é um passo para reduzir a quantidade de mortes, mas seu efeito é de gota em oceano de sangue. Os índices estão aí para provar. Segundo o último Atlas da Violência, de 2017, o número de homicídios dolosos no Brasil cresceu 22,7% de 2005 a 2015. Ao todo, 71,9% desses crimes foram cometidos com uso de armas de fogo. Ou seja, de nada adiantou ter desarmado massivamente a população, enquanto quadrilhas organizadas continuam tendo acesso livre a armamento de guerra, que atravessa tranquilamente as fronteiras por ar, mar e terra. A recente prisão do megatraficante de armas Frederik Barbieri nos Estados Unidos é o retrato inconteste dessa realidade.
Como se pode ver no caso Marielle, mesmo o material bélico produzido no Brasil, sob controle e fiscalização do Exército, continua a serviço da criminalidade, através de lotes desviados ou subtração dentro das próprias unidades da polícia e, não raro, da Justiça. O que revela o quanto estão abertas as brechas de acesso de bandidos aos mecanismos da morte. Situação idêntica ocorre com os explosivos usados em ataques a banco, uma das piores pragas para a segurança pública na atualidade. Hoje, agências bancárias vão pelos ares com a naturalidade na qual as crianças estouram fogos na época junina.
Embora de realidades sociais bastante incompatíveis com a nossa, países como Japão e Inglaterra têm muito a ensinar ao Brasil em matéria de controle de armas e munições. Não se trata apenas do excesso de rigor na liberação de portes, das regras de venda em estabelecimentos comerciais e da vigilância sobre produção e importação. Aqui há dispositivos legais que endurecem a compra, o uso e a produção, ainda que em grau mais leve. A diferença está no cuidado e na vigilância por parte dos órgãos de segurança, a quem cabe a tarefa de fiscalizar o setor e coibir o mercado clandestino. Fora, é claro, a dureza da lei para casos em que ela é ultrapassada.
A execução de Marielle chocou o país pela visibilidade da vítima, por sua trajetória de luta em defesa das mulheres e dos negros pobres de uma cidade já não tão maravilhosa. O último ato da vereadora que denunciava o abuso de autoridade e a violência da polícia contra moradores de favelas tirou de vez o véu que cobre os subterrâneos do comércio ilícito de armas e munições no país, que se não for parado a tempo fará a cada dia novas vítimas, em sua maioria, sem a notoriedade de Marielle.
É como diz a canção Onze Fitas, de autoria da compositora carioca Fátima Guedes e imortalizada na voz de Elis Regina: “Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto, um desgarrado/ Onze tiros fizeram a avaria/ E o morto já tava conformado/ Onze tiros e não sei porque tantos/ Esses tempos não tão pra ninharia/ Não fosse a vez daquele, um outro ia/ Deus o livre morrer assassinado”.