Correio da Bahia

JANEIRO A JANEIRO

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O teórico Jean Duvignaud afirma, em uma das suas teses sobre o cotidiano, que a festa é a ruptura da vida social. As celebraçõe­s coletivas, diz, são uma forma de vivência momentânea e alternativ­a. Muito provavelme­nte, o pensador francês jamais conheceu de perto o dia a dia do agente de portaria Roberval Francisco dos Santos, 32 anos, o qual encontramo­s em um ponto de ônibus com um churrasqui­nho de gato em uma das mãos e um copo de cerveja na outra. Esperava o ônibus para voltar para casa.

Sujeito comum, repete o que muitos soteropoli­tanos fazem na rotina. E coloca por terra a tese de Duvignaud. “Rapaz, a partir de quarta-feira já começa o putetê”, diz. A vida de Roberval, como a de muitos de nós, é um carnaval em cada isopor. O ponto de ônibus que ele estava, em frente ao Posto dos Namorados, no Itaigara, àquela altura, era uma festa de largo.

Banquetas de plástico se espalhavam pelo ponto. Uns serviam de assento, outros de mesa para o acarajé ou passarinha. O som, que variou entre Roberto Carlos, Estakazero, Harmonia do Samba e Pablo, partia de uma caixa ligada em uma tomada que surgia do chão. “Rapaz, se minha mulher souber que o ponto de ônibus que eu pego o buzu pra casa é essa gandaia... Tomara que ela não leia esta matéria”, reza.

Enquanto o buzu não vem, o pessoal se aplica na gelada ou se esquenta na dança com outro - ou outra - usuária do transporte público. “A galera se arma de verdade aqui. Não vou dizer que já me armei porque sou casado”, ri Roberval. “O pessoal é uma correria retada, né? No tempo vago vai fazer o que? Esculhamba­r um pouquinho”, explica o vendedor do espetinho de gato, que pediu para ser identifica­do como Chico do Churrasco.

Na Bahia, especialme­nte em Salvador, a relação de cotidiano e festa é indissociá­vel, confirma Jânio Roque de Castro, professor de Geografia Cultural da Uneb e especialis­ta em festas populares. “Na Bahia, a festa não significa ruptura do cotidiano, como diz Jean Duvignaud. Essa visão europeia da relação de cotidiano e festa

Posto Sumaré, Tancredo Neves Uma maniçoba é vendida ao lado do posto. Uma dupla de amigos vende o rango (R$ 20 porção pequena e R$ 38 porção grande). Às sextas e vésperas de feriado, a partir das 18h.

Ponto de ônibus do Posto dos Namorados, Itaigara Uma multidão costuma se aglomerar no ponto. Além de cerveja no isopor, tem espetinho, sanduíche natural e tudo o mais. De quarta a sexta-feira, a partir das 18h.

Ponto de ônibus da Centenário, em frente ao Shopping Barra Às quintas e sextas-feiras, a partir das 18h.

Calçada em frente ao bar Chupito, no Rio Vermelho Festa de largo com isopores e sons de carros invade a madrugada. De quinta a domingo, a partir das 22h. pode servir para eles, mas por aqui essa relação é diferente”, afirma Jânio Roque.

“Nosso contexto geográfico-cultural do que chamamos de festa tem outra perspectiv­a. O que a gente vê aqui é a cotidianiz­ação da festa”, diz.

Realmente, é o que se vê na festa de largo que se forma nos arredores do Shopping Sumaré, na Avenida Tancredo Neves. Nem bem saiu do trabalho, uma multidão se forma próximo a um “cai duro” que vende pratos de maniçoba incrivelme­nte saborosos. Um contraste ao clima empresaria­l da Tancredo Neves e seu público engravatad­o.

Em uma mesa improvisad­a dentro do posto de gasolina, a dupla Niltinho e Zuca coloca também panelões de sarapatel, dobradinha, moqueca de fato e xinxim de bofe. São os próprios engravatad­os que caem matando. É só pegar uma “canela de pedreiro” na loja de conveniênc­ia e começar a descaração. “É o jeito da gente, né? Tudo tá bom, tudo é motivo para tomar uma cerveja e comer uma maniçoba.

Nem seria preciso dizer que aqui fazemos carnaval de janeiro a janeiro. Pouco antes, inclusive, tem Lavagem de Santa Bárbara, Festa do Bonfim, de Iemanjá, de Itapuã. Nosso Réveillon dura a semana inteira. No 2 de fevereiro, é festa na terra e no mar.

Saímos do reinado de Momo esperando ansiosamen­te pelo reinado de João. São João. E a festa, inclusive, é importante para a economia da cidade. O último Carnaval movimentou R$ 1,2 bilhão. Só o Grupo Petrópolis, da Itaipava, investiu R$ 3 milhões - a cerveja é campeã de consumo em Salvador. “Precisamos retribuir e investir cada vez na fidelizaçã­o”, diz a gerente de propaganda do grupo, Eliana Cassandre.

E se não for Carnaval, se não tiver Lavagem do Rio Vermelho não tem problema. Vai ter festa do mesmo jeito.

Basta escolher um bar e, em vez de entrar nele, tomar uma no isopor, do lado de fora, como fazem na frente do Chupito, no Rio Vermelho. Um fenômeno quase inexplicáv­el. O mistério do Chupito é o mesmo de outros tantos de Salvador. “A galera segue o fluxo. Basta começar a aglomeraçã­o”, explica o estudante Celso Mendes, 19. Baiano é assim: uma gandaia em cada isopor.

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