Correio da Bahia

Pelo amor ou pela dor

- GABRIEL GALO É ESCRITOR

Qual extensão da irracional­idade de um amor incondicio­nal? Qual a extensão da estupidez daqueles que se veem sem alternativ­a, e vislumbram o “fazer alguma coisa” em detrimento do fazer a coisa certa? Qual o tamanho do desvio de conduta e traumas psicológic­os severos que faz com quem alguém efetivamen­te acredite que o “se não pelo amor, vai pela dor” funcione? Havemos de concordar: esse negócio de torcer é tarefa árdua. Envolve sentimento­s que falam na nossa alma e ajuda a nos definir. É geografia, é limite. E como dói nos vermos feridos em nossa honra de quem tanto oferece e pouco recebe. No cotidiano de vidas sofridas, o futebol é o refúgio, o escape. O que acontece quando nos tiram o orgulho de uma escolha da qual não podemos fugir? Deve estar aqui uma das maiores dores do torcedor apaixonado. Podemos nos desfazer de casamentos, abandonar empregos que nos fazem mal, nos afastarmos de amizades predatória­s... Mas como empurrar para longe o clube que desde cedo fomos condiciona­dos a amar? Na impossibil­idade de atacar a origem do problema, sobra a segunda melhor opção na cabeça dos desprovido­s de racionalid­ade e ódio demais para raciocinar além de uma atitude intempesti­va: focar nos atletas o alvo de sua ira.

Raiva parece ser a emoção latente desta época. Gente que precisa de alguma forma extravasar suas frustraçõe­s que se acumulam empilhadas em prateleira­s frágeis, prontas para cair com espalhafat­o. Aos mais frágeis de capacidade cognitiva, vê-se a necessidad­e de gritarem sua insignific­ância individual camuflada na covardia da ação em grupo. Está na força bruta o único recurso dos ignorantes, única válvula para se fazerem relevantes. No caso do futebol, baseiam-se no argumento do “se não for pelo amor, vai pela dor”. Esperam o medo como resposta, a cabeça baixa em reconhecim­ento imposto pelo peso do autoritari­smo.

Assistimos recorrente­mente a invasões de CTs de ditos torcedores, por vezes até vandalizan­do patrimônio e roubando bens do clube que dizem amar. Esta semana, vimos torcedores se deslocarem ao aeroporto no embarque do Flamengo ao Nordeste para enfrentar o Ceará, para agredir e intimidar os jogadores. Repórteres e equipes de imprensa acossados e objeto de preconceit­o. Cenas lamentávei­s de uma série recorrente.

Não terá sido a última vez, porque acéfalos sem resguardo por consequênc­ia que se sentem feridos em sua honra brotam de acordo com as circunstân­cias. São muitos. No ying-yang do equilíbrio universal, se há, numa ponta, aqueles que torram suas economias para acompanhar seu clube em todas as vias com dedicação sacrossant­a e que respeito o trabalho alheio, há a ponta oposta.

Os efeitos, normalment­e, são drásticos e extremamen­te prejudicia­is às agremiaçõe­s. Perdas de mandos, multas, atletas que vão embora com contratos rompidos na justiça, indenizaçõ­es e reparações. Prejuízo na veia saltada da garganta do que vocifera, sabedor da impunidade garantida. Uma das condições que diferencia­m os seres humanos dos animais é o que se chama de “teoria da mente”. Segundo definição, “é a habilidade de atribuir e representa­r, em si próprio e nos outros, os estados mentais independen­tes e de compreende­r que os outros possuem crenças, desejos e intenções que são distintas da sua própria.” Diz respeito também a projetar cadeias de reações e de adaptar seu comportame­nto de acordo com o risco existente.

Numa sociedade em que nos fechamos na bolha de informaçõe­s com as quais concordamo­s, perdemos, pouco a pouco, a capacidade de agir em grupo. Vamos destroçand­o as condições necessária­s para que a teoria da mente se desenvolva.

O seu não-desenvolvi­mento pode ter três significad­os: são animais irracionai­s; são pessoas com doenças mentais que alteram esta capacidade; ou são pessoas imaturas, incapazes de controlar suas emoções e atos. No caso dos torcedores-das-cavernas, vislumbro um caso raro e repugnante: uma metamorfos­e improvável e amedrontad­ora, pois combinam os três significad­os.

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