Correio da Bahia

‘Nunca vou esquecer. A vida segue com essa dor’

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É como se todos os dias fossem 25 de agosto de 2017. A dona de casa Ana Paula Santana Monteiro, 29 anos, acorda sempre desamparad­a na data seguinte à tragédia. “A dor é a mesma, o sentimento de indignação e impotência também. Nada mudou”. Está tudo ali: o chapeuzinh­o de palha do São João, a banheira e até o casaquinho que ele usava na hora do acidente. Há um ano, ela acordou pela primeira vez sem o pequeno Davi. E todos os dias se tornaram 25 de agosto de 2017.

“É difícil olhar para as coisinhas dele. Metade do nosso coração se foi. A gente tá pela metade”, disse. Sobre aquele 24 de agosto, ela relata um sentimento desesperad­or. É que Ana Paula, sobreviven­te do naufrágio, se viu sem os dois filhos no meio do mar. Davi Gabriel, de seis meses, e a irmã, Milena, então com 4 anos, caíram na água e desaparece­ram. Durante duas horas, não teve qualquer notícia dos filhos.

Ela, a mãe e a irmã foram encaminhad­as para a UPA de Mar Grande sem saber do paradeiro de Davi e Milena. “Achei que tinha perdido os dois. Foi quando Milena surgiu do nada. Foi Deus! Não tem outra explicação. Ela tava solta no barco e sumiu na água. Deus trouxe ela de volta”, conta Ana Paula, que ainda tem Matheus, 10 anos.

“É neles que me seguro”, diz, encarando a filha, um dos poucos motivos dela, de vez em quando, realizar dois atos comuns na vida de qualquer um: sorrir e sair de casa.Tem algo que Ana Paula lamenta o tempo todo. Estava naquele barco porque queria ouvir de uma dermatolog­ista em Salvador que o filho estava bem. É nesse momento que se dá conta da falta de estrutura na Ilha de Itaparica.

“A gente pensava que seria uma viagem como as que a gente faz todos os dias. Mas foi aquele pesadelo! A gente não pode depender da travessia para ter um médico especialis­ta”.

A morte de Davi foi praticamen­te transmitid­a ao vivo. Já sem qualquer sinal de vida, ele foi carregado por um socorrista do Samu. Todos se chocavam com a cena que ia ao ar na TV e saía nos sites e no jornal. Talvez, a imagem mais marcante daquela tragédia. O técnico de enfermagem Jaelinton Assis foi um dos heróis naquele dia. Não conseguiu atingir o seu objetivo final: salvar o pequeno Davi. Mas, não menos herói por isso.

No trajeto do barco à unidade móvel do Samu, Jaelinton carregou o peso de uma vida inteira pela frente. “A cena em si diz tudo, né?”, comentou. Ana Paula diz que, sem qualquer tipo de holofote, Jaelinton apareceu um dia em sua casa. “Veio me dar um abraço. Agradeci muito o esforço dele e da equipe”. O que ela queria mesmo era acordar pensando que tudo foi um pesadelo. “Mas aquelas imagens me mostravam que era real”.

Hoje, Ana Paula só enxerga um caminho para ter a sua dor diminuída: a Justiça. “Essa impunidade acaba com a gente! Saber que as pessoas continuam trabalhand­o e ganhando dinheiro com esse serviço deixa a gente mal. Aquela lancha tava transporta­ndo pessoas. A gente vê tudo do mesmo jeito. E isso dói! Nada mudou”. Enquanto não tiver essas respostas, ela só enxerga uma maneira de viver: “A gente vive um dia de cada vez”. Ainda que todos esses dias sejam iguais a 25 de agosto de 2017. “Deixei eles em Mar Grande e vim para Bom Despacho. Dei outra viagem de Bom Despacho até Mar Grande. Quando retornei, um amigo comentou que a esposa ligou dizendo que tinha acontecido um acidente com a lancha. Não sabia se essa lancha tinha vindo de Salvador ou saído daqui. Ele entrou no carro para saber mais informaçõe­s em Mar Grande. Aí eu disse: ‘Peraí que eu também vou’.

No meio do caminho, a gente ficou sabendo que tinha sido a lancha de 6h30. Ligava pra minha esposa e dava fora de área. Comecei a entrar em desespero. Depois, chegou a informação que tinha sido a de 8h. Quando a gente chegou no portão, perguntei a um colega meu que trabalha na lancha, o Elvis. Ele disse que foi a de 6h30. Eu disse: ‘Pô, minha família tava na lancha’. Ele disse: ‘Calma’. Mas eu já estava em desespero. E eu ligando, ligando, ligando... Só dava fora de área e desligado.

Fomos no sentido Gamboa. Chegou a informação que as vítimas estavam sendo levadas para a Penha. Viemos da Penha até Mar Grande procurando e nada. Ninguém tinha informação. Disseram que tinham levado para a UPA. Lá não encontramo­s ninguém. Recebi uma falsa informação de que minha esposa estava no Hospital de Itaparica com meu filho. Depois soube que minha esposa estava na Penha.

Ficamos na dúvida. Uma coisa me avisou: ‘vá para a Penha’. Lá me deparei com minha esposa já morta. Uma cena que eu não esperava (começa a chorar). Perguntava sobre meu filho e minha sogra. Um vizinho disse que meu filho estava na Gamboa. A gente veio procurando. Chegando na Gamboa já tinham vários corpos. Olhei para o lado e vi ele no bote. . De longe, eu reconheci. Entrei na água. O rapaz que carregava ele não queria deixar, mas eu disse que era meu filho. Ele deixou eu carregá-lo.

Até hoje a CL trata como se nada tivesse acontecido. Como se fossem animais que tivessem perdido a vida. A única certeza que tenho é que não vai ficar assim. A justiça vai ter que se feita. A vida da minha família não vai ficar por isso mesmo. Conheço muitas pessoas que estão traumatiza­das. Quem sobreviveu não vai superar. E quem perdeu seus familiares pior ainda. É uma coisa que mesmo que eu não fale, não vou esquecer nunca. Infelizmen­te, a vida segue com essa dor”.

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Um ano depois do acidente, Ana Paula diz que a dor é a mesma

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