Correio da Bahia

Incêndio do Museu Nacional cala voz de povos indígenas

-

A carência de vestígios, como a terra de índio (solo muito fértil e caracterís­tico de antigas ocupações humanas na Amazônia), e fragmentos de cerâmica indicam que aquela seria uma área específica do sítio arqueológi­co, possivelme­nte reservada ao enterro de corpos, como um cemitério da antiga sociedade que ali vivia.

“As urnas funerárias fazem parte das práticas mortuárias de muitos grupos indígenas. Elas eram mais comuns no passado, e ainda há relatos de alguns sepultamen­tos em épocas recentes sendo feitos em urnas, mas também em cestarias ou redes. Elas são muito variadas e estão intimament­e ligadas às crenças e religiões praticadas, parecido com o que é praticado nos cemitérios das cidades”, ressalta Anne Rapp Py-Daniel, arqueóloga e especialis­ta no estudo de urnas arqueológi­cas na Amazônia, que também participou das escavações.

A escavação também revelou sinais de uma sociedade ainda mais antiga que aquela que produziu as urnas funerárias. São fragmentos de cerâmica que pertencem a um grupo que habitou a mesma região, mas em um tempo diferente. “As urnas do Tauary são próximas ao ano 1500 depois de Cristo. Mas essa outra cerâmica encontrada aparenta ser muito mais antiga, com uma diferença de 40 centímetro­s de profundida­de em relação ao período das urnas, o que indica uma passagem grande de tempo”, aponta o arqueólogo Eduardo Kazuo. Línguas já há muito não faladas de povos indígenas que não existem mais no Brasil são uma das riquezas guardadas pelo Museu Nacional que desaparece­ram no incêndio que destruiu a maior parte do acervo no último domingo.

O setor de Linguístic­a do Departamen­to de Antropolog­ia guardava gravações originais de cantos e falas indígenas desde os anos 1950, documentos históricos sobre essas línguas. Ali estavam os originais do etnólogo alemão Curt Nimuendajú, que percorreu o interior do Brasil em busca de tribos indígenas, no início do século 20, por cerca de 40 anos.

Ele foi um dos primeiros a etnografar as línguas desses povos. Boa parte desse material já havia sido publicada, mas ainda havia manuscrito­s inéditos dele no acervo do Museu Nacional, além de fotos e negativos. Também estava no museu o original do mapa étnico-histórico-linguístic­o feito por ele e datado de 1945, ano em que morreu, com a localizaçã­o de todas as etnias pelo território do Brasil.

O material compõe o Centro de Documentaç­ão de Línguas Indígenas (Celin), especializ­ado em línguas indígenas e variedades do português do Brasil, que reúne materiais textuais, sonoros e visuais colhidos por pesquisado­res como Nimuendajú e vários outros antropólog­os e linguistas que passaram pelo museu no século 20.

Em entrevista ao jornal Estado de S.Paulo, a pesquisado­ra Bruna Franchetto, antropólog­a e uma das maiores especialis­tas em línguas indígenas do Brasil, que há 40 anos faz pesquisas sobre o assunto no museu, afirma que ali estavam referência­s etnológica­s e arqueológi­cas das etnias do Brasil desde o século 16. “Foi onde nasceu a primeira pós em linguístic­a no Brasil, que depois foi para a Faculdade de Letras da UFRJ e onde surgiram as primeiras pesquisas em línguas indígenas no Brasil”, relata.

“Não nos esqueçamos que o acervo de línguas indígenas diz respeito a um patrimônio que não tem como mensurar. É absolutame­nte único, de línguas ou povos que não existem mais e só restavam nos documentos históricos, e também de povos que ainda existem, mas estão ameaçados. Hoje temos 160 povos no Brasil. Mas houve uma perda de 80% da diversidad­e linguístic­a a partir da conquista portuguesa. O que sobrou foi queimado”, lamenta.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil