Correio da Bahia

‘Agora voltei o espelho para mim mesmo’

- KÁTIA BORGES TEM UMA COLUNA AOS SÁBADOS NO CORREIO24H.COM.BR.

É aí que entra o criador, apostando na novidade, em algo que não é tratado. “A novidade pra mim é o risco. Não há nenhuma garantia de que o que você vai dizer é mais forte do que aquilo que vinha sendo dito. Mas também correndo o risco, você vai, como diz Borges [o argentino Jorge Luis Borges], bifurcar o caminho, vai abrir uma nova estrada, por onde você caminha e espera que outros possam também caminhar”.

Do lado acadêmico, também há originalid­ade. Em 2018, uma das principais obras de Silviano, Uma Literatura nos Trópicos – Ensaios sobre Dependênci­a Cultural, faz 40 anos. No vídeo em comemoraçã­o à data, produzido pela PUC-Rio, a presidente da Academia de Letras da Bahia, Evelina Hoisel, lembra que estudou os textos do autor na pós-graduação, em 1975, ainda em apostilas. A professora do Instituto de Letras da Ufba lembra também do Entrelugar, escrito nos Estados Unidos (The Space In-between), um dos celebrados conceitos de Silviano, sobre a falta de lugar preciso, ainda não palmilhado.

O companheir­o de mesa na Flica, o escritor e professor Marcus Vinícius Rodrigues, brinca ao dizer que conseguiu “um lugarzinho na frente para ver Silviano Santiago e, como pagamento, vou falar sobre o que eu escrevo”. Autor do recém-lançado livro de contos homoerótic­os Café Molotov, Marcus diz que sua expressão pessoal é a palavra escrita e ela é, sim, feroz, como sugere o tema da mesa. “É feroz porque é irrefreáve­l e tem a ver com a necessidad­e que temos de escrever”. A conversa promete. Stella Manhattan Publicado em 1985, é considerad­o o primeiro romance gay da literatura brasileira. O livro foi relançado em 2017 Mil Rosas Roubadas Num jogo entre ficção e memória, o livro de 2014 fala do afeto entre dois homens e rendeu a Silviano o Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2015 de melhor obra Em conversa com a jornalista e escritora Kátia Borges, Silviano Santiago fala de temas caros à sua obra, como a busca pela originalid­ade, uma constante em seus trabalhos ficcionais, e dos romances de sobrevivên­cia, que contemplam a velhice.

O senhor virá a Cachoeira no próximo mês, participar de uma mesa intitulada A Feroz Inquietude da Escrita. Em seu livro Genealogia da Ferocidade, o senhor fala sobre a domesticaç­ão de Grande Sertão. Como se dá esse processo?

A domesticaç­ão a que me refiro se relaciona à crítica literária que faz a intermedia­ção entre o possível leitor e a obra de arte de qualidade, relativame­nte, de difícil compreensã­o. Nesse processo, para facilitar o acesso ao leitor comum, o crítico é obrigado, muitas vezes, a atenuar as asperezas e a oferecer uma imagem menos agressiva, menos feroz, daquela obra. Esse é o caso de Grande Sertão Veredas, que é feroz e animal e que, no entanto, foi domesticad­a para ser compreendi­da. Essa domesticaç­ão tem um lado positivo e um lado negativo. O lado positivo é que ajuda mais leitores a compreende­rem. O lado negativo é que eles compreende­m menos, pois não enfrentam a ferocidade da obra.

Houve uma domesticaç­ão das obras modernista­s, não? Claro, basta olhar os livros de literatura. A produção modernista nunca foi de fácil alcance. Você pega Macunaíma, por exemplo. Saiu com apenas 300 exemplares na primeira edição. A segunda já teve 1.500. A terceira, publicada 15 anos depois, três mil. Macunaíma só passa a ser lido nos anos 1960, assim como o próprio Oswald de Andrade. Então, você vê que a obra de arte que tem asperezas, que não se dá facilmente, que não é um Paulo Coelho, sempre precisa de intermedia­ção. Ela facilita o ingresso do leitor em um universo que é, por definição, áspero e feroz.

Fala-se muito da chamada crítica negativa e, sobretudo, da ausência de crítica.

Mas aí já é outra coisa, diferente da que falamos. A crítica negativa é sobre obras que não são geniais. Ela só faz sentido sobre os novos. O que acontece em relação a uma obra que está surgindo? Você pode sempre elogiar, porque é novo e o que é novo precisa de incentivo. Ou você pode fazer uma crítica negativa, desde que não seja maldosa. Maldade é outra coisa. Estamos falando de uma crítica apoiada em argumentos sólidos e coerentes e que, por isso mesmo, não pode ser considerad­a negativa, pois tem a intenção de melhorar aquele autor, de ajudá-lo a compreende­r as limitações de sua escrita naquele momento. Sem a crítica, o escritor não consegue se aperfeiçoa­r no seu ofício.

Há uma contraposi­ção interessan­te entre o romance de sobrevivên­cia e o de formação. Como o senhor vê essas duas abordagens? São duas coisas completame­nte diferentes. O romance de formação trata da juventude no limiar da formação profission­al. O romance de sobrevivên­cia, dos últimos anos de vida. Esse último interessa bem menos aos leitores, que preferem personagen­s mais jovens, o que não é uma novidade. Mas o meu interesse é justamente por um tipo de literatura pela qual crítica e leitores se interessam menos, que são as obras escritas na velhice e que tratam da velhice.

Em Machado, o senhor diz ter se baseado na costura enigmática entre a vida e a obra desse autor. Como trabalhou essa costura em seu romance?

Isso é uma questão metodológi­ca. Em geral, os críticos e professore­s analisam apenas o texto, eles não se interessam pela vida do autor. Essa é a tradição, o cânone crítico. Mas, desde Michel Foucault, pelo menos, começa-se a indagar sobre as relações entre a vida e a obra, é o que ele chama de subjetivaç­ão. Machado é uma tentativa de compreende­r essa relação que, para nós, é uma incógnita ainda porque não há uma tradição

Alguns de seus livros, a exemplo de Em Liberdade e Viagem ao México, de certo modo, antecipam essa subjetivaç­ão na literatura brasileira.

Comecei cedo nisso, é um interesse meu, uma certa originalid­ade que eu busco. Em sala de aula, eu explico o texto. Em romance, eu tento uma coisa mais de vanguarda.

Quais costuras enigmática­s o interessam no momento? Agora voltei o espelho para mim mesmo, estou escrevendo as minhas memórias. Deixo de ser, por assim dizer, a câmera e adoto o espelho. Estou no primeiro livro, sobre a infância. Vou até onde a sobrevivên­cia deixar. É um processo em curso e falar sobre ele neste momento seria cair, talvez, no lugar comum.

O senhor já afirmou que Guimarães Rosa é contemporâ­neo deste século. O que, em sua opinião, caracteriz­a a contempora­neidade desse autor?

Me refiro à diferença entre os conceitos de atual e de contemporâ­neo. Nos anos 1950, eram atuais a Bossa Nova, a Bienal de São Paulo e a Poesia Concreta. Mas aqueles foram anos escuros também e muito difíceis. E essa escuridão permanece de maneira mais forte até hoje do que, propriamen­te, as suas luzes. Grande Sertão não era atual em 1950, mas é contemporâ­neo nosso. Vivemos na escuridão dos anos 1950, não suas luzes. E essa escuridão é Grande Sertão, não é a Poesia Concreta.

Em que medida a literatura se coloca a serviço da história?

Se fosse diferente, estaríamos no século das luzes e não na escuridão. Mas o problema da qualidade da educação é o mesmo no Brasil e em todo o mundo. Quando cresci, nos anos 1950, já era ruim e hoje piorou muito. De maneira geral, mesmo nos Estados Unidos, a educação hoje é decadente: faltam verbas e há perseguiçã­o a professore­s e alunos. Esse é um dos grandes males do presente.

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