Preconceito
Em sua segunda vez na Bahia, um dos mais importantes autores da literatura portuguesa contemporânea, Valter Hugo Mãe, 47 anos, fez questão de mostrar sua preocupação com o Brasil, país com o qual tem fortalecido a relação. “Venho nessa altura com alguma ansiedade para cá. Acho muito importante que as próximas coisas que aconteçam por aqui sejam de paz. Que nós possamos conversar e expor nossas consciências de boa fé”, pontuou o escritor, ao iniciar sua fala na abertura da Festa Literária de Cachoeira (Flica), ontem.
A mesa, intitulada de Escritores em um Mundo Intolerante e Deserto de Compaixão, teve ainda participação do autor baiano Aleilton Fonseca e mediação do diretor da Fundação Pedro Calmon (FPC), Zulu Araújo, que falaram sobre o contexto violento que vive o país e destacaram a importância da literatura para combater o preconceito e o ódio.
“Seria mais confortável se ser escritor não implicasse na utilização da voz pública. É inevitável que o que a gente escreva não afete a praça. O nosso grande desafio é a deturpação, as pessoas interpretarem mal. Estar nessa praça pública nos obriga a ter a coragem da frontalidade. Não dá para a gente fazer de conta que não viu”, afirmou Valter Hugo.
Para Aleilton, o escritor é aquele que materializa a realidade, a partir do seu dia a dia, vivências, visão de mundo e também a partir do que ele aprende e se sensibiliza. Durante o bate-papo, o baiano afirmou que considera a literatura uma forte ferramenta na formação de novas gerações. “Quando nós, que viemos de vários lugares, nos unimos para falar de literatura, podemos crescer individualmente e como humanidade, apesar de todos os problemas. A tolerância e a compaixão são condições do ser humano. Não podemos abrir mão disso, disse.
Valter Hugo Mãe concordou, e acrescentou que utiliza a escrita e a poesia para dar substância a uma determinada consciência, com a qual não tem muito controle. “Quero muito que o mundo seja melhor. É com muita perplexidade que vejo o mundo piorando a passos largos. Sou essa pessoa que um dia
quis muito salvar e mudar o mundo. Tive esse sonho, mas hoje tenho a percepção de que não há essa força em um só homem”, completou.
Apesar da visão otimista, o português considera que estamos vivendo em um mundo cada vez mais intolerante, onde o cidadão comum, que virou emissor através das redes sociais, revela uma despreparação grave. “A intolerância cria no indivíduo a sensação de ficar impune, como se aquilo que ele critica dissesse respeito apenas aos outros e ele pudesse passar de fininho, diante de toda a porcaria que ele próprio permite”, disse.
Falando de intolerância e democracia, o idealizador e realizador da Flica, Emanuel Mirdad, fez questão de agradecer a presença da escritora mineira Conceição Evaristo, homenageada desta edição. Em discurso potente, a secretária de Cultura da Bahia, Arany Santana, afirmou que “Conceição nos representa”. Também afirmou que “as águas estão cor de chumbo”: “Digo isso porque, no último domingo, perdemos um desses seres de luz que vêm para a terra iluminar àqueles que fazem da cultura o seu ofício. Refiro-me ao mestre Moa do Katendê. Não podemos nos abater, nos intimidar, muito menos recuar, nem reduzir nosso entusiasmo pela paz, pelo amor e democracia”.
O curador da Flica, Tom Correia, explicou que a programação da festa está marcada pela diversidade, representatividade e pelo ecletismo. Feminismo e negritude são temas que estarão em pauta com frequência. “As mulheres precisam ocupar espaços de visibilidade. Divirtam-se”, desejou.