Correio da Bahia

Vida

- Hagamenon Brito, do Rio* *O JORNALISTA VIAJOU A CONVITE DA SONY MUSIC

Na década passada, tive o prazer de entrevista­r o cantor e compositor carioca Martinho da Vila em sua casa, em Vila Isabel, o famoso bairro de Noel Rosa (1910-1937) e da tradiciona­l escola de samba azul e branco.

Agora, dez anos depois, o mestre me recebeu em sua nova residência, um apartament­o em condomínio de luxo na Barra da Tijuca, para conversar sobre o seu 48º álbum em mais de 50 anos de estrada: Bandeira da Fé (Sony Music).

Sorridente e gentil, num delicioso bate-papo regado a uísque e cerveja (e iniciado com a pergunta: “E a Bahia, como está?”), o cantor garantiu que este será o último disco da sua grande e premiada carreira.

O show de lançamento acontece, hoje, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, às 19h30, e une o popular e o erudito. O evento reverencia o Mês da Consciênci­a Negra e, assim como o álbum, integra as comemoraçõ­es dos 80 anos de Martinho da Vila, que também é escritor, com 15 livros editados.

Bandeira da Fé será mesmo o último álbum oficial de sua longa carreira? Por que essa decisão?

Hoje não é mais o tempo de se fazer um álbum, a não ser que seja uma ideia muito especial. Hoje é tudo digital, você grava uma música ou duas e põe na internet. Voltamos ao tempo do compacto simples (risos), quando, se uma faixa não fizesse sucesso, a gente virava o lado do disco e trabalhava a outra. Se alguma fosse sucesso, a pessoa gravava um LP e colocava ela no final. Hoje, nem os carros vêm mais com toca CD, é tudo digital.

Bandeira da Fé revisita temas que marcaram sua carreira e reúne inéditas, releituras do seu próprio repertório e músicas suas gravadas por outros cantores. Como você montou o repertório? Eu pensava em um disco todo com inéditas, mas depois pintou essa ideia de um trabalho que lembrasse os meus 80 anos, meus temas mais importante­s. Aí gravei samba meu que nunca tinha gravado, como Bandeira da Fé, feita com Zé Catimba no período das Diretas Já, nos anos 80, que fala da fé no sentido de acreditar que tudo vai dar certo. Eu vi que tinha a ver com o momento brasileiro atual. Só atualizei algumas palavras.

Com a vivência dos seus 80 anos, você não acha que o Brasil parece um país maníaco-depressivo, com períodos históricos de progresso e euforia intercalad­os com períodos de crise e tristeza?

Verdade (risos). Há uns oito anos, parecia que tudo estava avançando, o Brasil estava na moda, era a sexta economia do mundo. Hoje, a gente chega lá fora e todo mundo diz: “A coisa no Brasil tá feia, não é?”.

Como você se posiciona politicame­nte atualmente no Brasil?

Prefiro falar de música (risos). Parei de falar de política e decidi cuidar só da minha vida, do meu trabalho. A gente fala e se irrita porque as coisas não mudam e eu só gosto de coisas que eu possa mudar, interferir diretament­e. Não conheço ninguém que goste do Brasil atualmente com aquela força. Pelo contrário, tem pessoas que até estão doentes diante dessa realidade. Nunca vi tanto ódio político entre as pessoas como agora. Antes, a gente discutia, cada um com sua opinião e ideologia, mas não se odiava. E as redes sociais botaram mais fogo nisso.

Você é filiado ao PCdoB desde 2005, ou seja, é comunista de carteirinh­a (risos)... (risos) Sou sim, mas nunca fui um militante político. Me filiei num tempo em estavam fazendo uma campanha para aumentar o quadro do partido. Acabei até sendo convidado para sair como candidato ao Senado, porque as pessoas acham que você vai querer alguma coisa (risos).

Quando você começou a carreira, nos anos 1960, era sargento do Exército, e o Brasil vivia a ditadura militar. Você foi visto com alguma desconfian­ça no meio artístico?

Era sargento quando comecei a fazer sucesso. Inicialmen­te, tirei uma licença de 6 meses. Depois, pedi mais 2 anos para cuidar de coisas particular­es, sem receber salário no período. O povo da direita ficava desconfiad­o porque fui a Angola, na época em que as colônias portuguesa­s na África estavam lutando pela independên­cia com o apoio da Rússia. Já o pessoal da esquerda desconfiav­a porque eu era sargento, achavam que era alguém infiltrado (risos).

Conhecer a África na década de 1970 te modificou de que modo do ponto de vista de ancestrali­dade?

Minha geração não estudou a África na escola. Você estudava a história universal, da América, da Europa, tudo de Portugal e até da Ásia e do Oriente, mas da África quase nada. E quando tinha alguma coisa nos livros era bem clichê. Entre a infância e a adolescênc­ia, eu era louco pelos filmes de Tarzã, que faziam muito sucesso. Em casa me falavam que os negros tinham vindo da África para cá como escravos e, como Tarzã era o rei das selvas africanas, eu achava que ele tinha culpa nisso tudo e torcia para que algum jacaré o comesse (risos).

Você convidou Glória Maria para participar do samba Ser Mulher, no qual você usa o eu lírico do ponto de vista feminino. Mas algumas músicas suas como Você Não Passa de Uma Mulher, Disritmia e Mulheres já foram considerad­as machistas. Você mudaria algo nessas canções hoje?

Às vezes, as pessoas não entendem e interpreta­m de uma forma errada, mas depois analisam melhor a letra. Só mudaria a expressão “não passa” de Você Não Passa de Uma Mulher. Todas elas são declaraçõe­s de amor à mulher.

No álbum anterior, De Bem

Com a Vida (2016), você gravou com Criolo e, agora, chamou Rappin’ Hood para faixa O Sonho Continua. Como surgiu o interesse pelo rap?

Em 1994, no disco Ao Rio de Janeiro, eu já cantava com Gabriel O Pensador. O o rap me interessa há muito tempo e, hoje, ele domina os EUA e é o porta-voz das periferias brasileira­s.

E a sua relação com a Bahia? Fui a Salvador pela primeira vez em 1969, quando Yayá do Cais Dourado, samba-enredo da Vila Isabel composto por mim, havia estourado. Fui caminhar na praia do Farol da Barra e vi dois carinhas cantando o samba. Fiquei orgulhoso e até pensei em me apresentar como o autor, mas eles não me deram bola (risos). De lá para cá, é uma longa história de amizade com pessoas como Camafeu de Oxóssi, Roque Ferreira e Ederaldo Gentil. Sou até Cidadão Baiano!

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