Uso irregular provoca ataque cardíaco
nas prateleiras, sobram caixas para a clandestinidade.
O medicamento é distribuído, no Brasil, pela Novartis Biociências. O diretor do grupo suíço no país, João Sanches, foi, então, confrontado com os casos e a possível ligação entre o aumento da demanda, a ausência nas prateleiras e o desvio para o mercado ilegal. Uma questão que foge à Novartis, ele acredita. Não houve, no entanto, qualquer roubo de carga ou desvio registrado. “A gente sempre olha para quem estamos trabalhando. Todo o faturamento que a gente faz a gente segue as normas da Anvisa. Mas o que podemos dizer é que, a partir do momento que a pessoa compra vários medicamentos, e há falta, ela pode escolher vender ilegalmente”.
A Novartis pediu envio do nome das farmácias acusadas para apurar o fornecimento de medicamento. O Conselho Regional de Farmácias do Estado da Bahia também desconhece os casos. Mas o presidente do órgão, Mário Martinelli, recomendou: “O CRF-BA não foi notificado sobre a situação, mas recomendamos realizar a denúncia na Polícia Federal e na Anvisa. A Ritalina é um medicamento controlado. Significa dizer que sua comercialização só deve ocorrer em farmácias e através de prescrição”.
Entre o consultório, as salas de aula e as noites de estudo, Roberto* precisa de uma ajuda extra. Dos comprimidos brancos, consegue a concentração necessária. Desde que saiu da graduação em Medicina, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), para o mestrado, apela para a Ritalina, conhecida como pílula de inteligência e da concentração. Já Cláudia* recorreu ao tarja-preta em 2016, quando começou a estudar para o concurso da Defensoria Pública do Estado da Bahia. “Comecei a tomar nos dias mais cansativos. Como quando saía do trabalho tarde e estava com estudo acumulado. Me sentia pura atenção”, lembra.
Histórias como a de Roberto e Cláudia marcam o trajeto de escalada da Ritalina. Processo observado, principalmente, a partir da última década. Em 2005, o psiquiatra e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Rossano Lima se propôs a estudar o suposto fenômeno da desatenção, suas características e como ele abastece a indústria dos remédios no livro Somos Todos Desatentos? O TDAH e a Construção de Bioidentidades. Mais de 13 anos depois, o médico voltou a explicar a engrenagem que move o consumo de Ritalina no Brasil.
“Hoje em dia, somos mais cobrados, né? Rapidez, foco, concentração, não-procrastinação. É o chamado ‘dopping intelectual’, geralmente cometido por pessoas que têm demandas muito grandes”, explica Rossano. O remédio começa a ser usado, inicial- mente, apenas em crianças, pioneiramente nos Estados Unidos, na década de 1950. Somente aprimoradas as potencialidades de duração do remédio – chega a atuar oito horas no corpo do usuário – espalhou-se nos corredores de faculdades e cursos. No mês de junho, a Novartis já não conseguia atender às demandas oficiais e clandestinas.
À Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reportou uma falha na continuidade da produção. O diretor João Sanches percorreu a linha dos fatos que levaram ao desabastecimento: atraso para a liberação da importação pela Anvisa, mudança repentina de uma rota de um avião de carga e a alta das compras. A procura estava nas alturas. É a primeira grande crise de fornecimento.
A demanda média do mercado, a Novartis calculou a pedido do CORREIO, é de 150 a 160 mil unidades por ano. Por ano, há crescimento de 15% na procura – sobretudo pelos fora-de-bula.
“Sabemos que existem pacientes que usam a Ritalina para manter um alerta maior [...]. Só o médico pode fazer a prescrição. Se o médico prevê três ou mais caixas, não temos como controlar. É uma questão de informação para haver um uso adequado do comércio”, diz Sanchez.
Mas, por que logo em agosto o consumo do remédio cresce tanto? A compra do remédio segue tendências. No ano de 2015, Maria Fernanda Barros, do Centro de Informações sobre Medicamentos do Conselho Regional de Farmácia, elaborou, com outros pesquisadores, uma nota técnica em que avaliava as oscilações de compra de Ritalina. E os possíveis porquês. O grupo analisou sete anos de consumo 2007 a 2014.
Enquanto há aumento em agosto, a queda começa a ocorrer no mês de novembro. “É justamente em agosto que os estudantes precisam correr atrás, por ser fim de semestre, por exemplo. Há também a questão do uso entre crianças. Em agosto, costuma ser o retorno às aulas, quando elas precisariam estar mais concentradas. Em novembro são as férias”. Uma explicação apenas temporal de um fenômeno ainda não completamente desvendado.
Chegou ao Brasil em 1998 indicado para pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade
(TDAH) e narcolepsia (distúrbio que causa sonolência excessiva)
Nas salas de aula, o medicamento se popularizou sem prescrição, estudantes começaram a apelar para o mercado clandestino e diagnósticos apressados em busca das chamada “pílula da concentração”
Crescimento do consumo é comprovado: de acordo com estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, foram 94 kg de Ritalina consumidos em 2003, contra 875 kg em 2012
Ingestão da medicação sem acompanhamento médico pode causar consequências, desde dores de cabeça a ataques cardíacos A Ritalina, explica a psiquiatra Paola Robatto, aumenta a capacidade de concentração por uma razão: libera neurotransmissores como a dopamina e a noradrenalina, que atuam em partes do cérebro responsáveis pelo foco. O tratamento pode seguir até o fim da vida, a depender do quadro clínico.
Sem acompanhamento médico, as consequências da ingestão do remédio variam de simples dores de cabeça até a possibilidade de um ataque cardíaco, explica Paola. O problema é que o próprio diagnóstico de TDHA, por exemplo, pode ser incorreto. Não há exames específicos para determinar a doença. Então, os próprios pacientes começaram a simular quadros similares aos de portadores da deficiência.
“A pessoa já vai com um discurso todo preparado para o médico. De que sente isso e aquilo. Não necessariamente é com intenção de enganar. A pessoa realmente acha que tem aquele problema”, diz a psiquiatra.
Diariamente, alguns dos mais de 100 agentes da Vigilância Sanitária Municipal saem às farmácias para apurar as condições de funcionamento e a rotina de venda para coibir o tráfico e evitar o uso indevido. Os proprietários das farmácias precisam de notas fiscais e prescrições às mãos, quando são questionados sobre a venda de medicamentos controlados.
Precisam, ainda, atestar que a venda do produto foi lançada ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Remédios Controlados, no máximo sete dias após a venda.
Mas, do raio de ação, fogem algumas farmácias, reconhece a Vigilância. Assim como ocorre no Vale da Muriçoca, acontece em endereços mais afastados. “Temos dificuldade até em entrar em certos bairros, porque os comandos [referência ao crime] não deixam. Tudo isso a gente tem que prestar atenção”, diz Ioni Pimentel, fiscal de Controle Sanitário. Ela, então, pede que façam denúncias. “A gente pede que haja denúncia à Vigilância em casos que os moradores descobrirem algum esquema”, continua.
O problema, muitas vezes, é dar materialidade à denúncia de tráfico, diz o delegado Grimaldo Marques. Principalmente quando a venda é feita em corredores de faculdade e salas de cursinhos.