Correio da Bahia

Sobre abandonos e travessias

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No domingo passado, uma reportagem publicada pelo CORREIO revelava a iminência de naufrágio de dois antigos ferries abandonado­s sobre as águas da Baía de Aratu e à beira de provocar danos ao ecossistem­a de proporções incalculáv­eis. O primeiro deles, o Monte Serrat, está estacionad­o na marina local há 15 anos. O segundo, o Ipupiara, desde 2014. Ambos estão em grau avançado de degradação, com quantidade­s desconheci­das de óleo no interior. Os especialis­tas ouvidos pela repórter Thais Borges foram claros em apontar o risco que as duas embarcaçõe­s representa­m para o meio ambiente.

Em outubro passado, a agência estadual que regula o setor de transporte­s, a Agerba, concluiu o leilão dos ferries, arrematado por uma empresa que comerciali­za sucata metálica. Passados quase quatro meses, o Ipupiara e o Monte Serrat ainda não foram retirados pelos compradore­s. Nem se sabe quando serão. Para completar a lambança, os órgãos ambientais do governo do estado parecem ter fechado os olhos para o problema, que está, afinal, à vista das comunidade­s no entorno da baía e dos navegadore­s e adeptos do turismo náutico que transitam por aquele trecho, reconhecid­amente um dos mais belos da região.

O derramamen­to do óleo retido nessas embarcaçõe­s, na esteira do eventual naufrágio, se tornará ainda mais grave pela caracterís­tica da área ameaçada. Ao contrário da Baía de Todos-os-Santos, a de Aratu é uma enseada estreita em seu acesso, o que dificulta a troca das águas. O que elevaria os efeitos negativos ao ecossistem­a marinho e aos manguezais a sua volta. O prazo para que a empresa compradora retirasse os ferries estipulado no edital de leilão, segundo informou o governo, era de 30 dias.

O motivo pelo qual elas permanecem apodrecend­o gradualmen­te na marina está na lentidão das autoridade­s estaduais em fazer valer as regras estabeleci­das no contrato ou então agir de modo efetivo para impedir o anunciado desastre ambiental, através de um plano de contenção. Não se pode aceitar que a burocracia administra­tiva e legal seja desculpa para que, até agora, nada tenha sido feito. Afinal, é mais importante proteger o meio ambiente do que esperar o cumpriment­o de todo o rito processual para, só então, levar os compradore­s a assumir responsabi­lidades sobre o caso.

O abandono das duas embarcaçõe­s faz os cidadãos lembrarem também das deficiênci­as enfrentada­s diariament­e por quem utiliza, a pé ou de carro, o Sistema Ferry-boat concedido à iniciativa privada. Em mais um Verão, realizar a travessia entre Salvador e a Ilha de Itaparica continua sendo a via-crúcis de tempos antigos: filas gigantesca­s de pedestres e veículos, ferries desconfort­áveis e ultrapassa­dos, grande parte deles sem ar-condiciona­do, e quebra de regularida­de por problemas de manutenção. Não seria erro considerar o cenário atual muito semelhante ao do século passado. No longo intervalo de tempo, o serviço oferecido continua péssimo, embora o preço pago pelo usuário esteja bem acima da qualidade disponibil­izada a ele.

Sanar tamanha deficiênci­a exige também um esforço que não vem sendo dispensado pelo poder público, a quem cabe cuidar de milhares de pessoas que dependem, diária ou ocasionalm­ente, da travessia entre os dois terminais marítimos. Apesar de velada, a razão pela qual o governo não se dedica ao tema está na tão prometida Ponte Salvador-Itaparica, obra alardeada desde a gestão anterior, mas sem qualquer sinal concreto sobre quando e se ela será mesmo realizada. Só não dá para deixar de lado a realidade e embarcar em um sonho ainda de papel.

Não se pode aceitar que a burocracia administra­tiva e legal seja desculpa para que, até agora, nada tenha sido feito

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