Correio da Bahia

O êxodo urbano do século 21

Busca por mais espaço e qualidade de vida faz dobrar procura por imóveis no interior da Bahia durante a pandemia

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ARua Nova, na localidade de Catu, município de Vera Cruz, é daquelas onde até os cachorros são conhecidos pelos nomes. A menos de 100 quilômetro­s de Salvador, o tempo não parece urgente e quase tudo é silêncio. Ao fim do dia, Lívia Anunciação, 33 anos, senta-se na varanda de casa. “Fico vendo a vida passar”, diz. Ela trocou a capital, em abril, por uma rotina em que seja possível trabalhar e enxergar o acontecime­nto da vida – nas plantas, no céu, no mar. “Percebi que meu cotidiano de antes não estava dando certo”, completa.

O interesse por moradias no interior, onde se busca um ambiente menos aglomerado, mais livre e longe da agitação dos centros urbanos, começou a ganhar sentido para um grupo que, com possibilid­ades financeira­s, passou a refletir sobre a vivência urbana. A Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliári­o da Bahia (Ademi) identifico­u, de março a julho deste ano, em comparação a 2019, o dobro da busca por moradias nos interiores. As regiões preferidas são Sul da Bahia, Litoral Norte e a Chapada Diamantina, segundo a Ademi.

A OLX, uma das maiores plataforma­s online especializ­adas em venda e aluguel, calculou, a pedido do CORREIO, um aumento de 32% na busca por imóveis no interior. Em Salvador, o aumento foi de 21%. A empresa não informou dados por município. “Foi uma possibilid­ade que o home-office trouxe. Há uma busca por morar num imóvel maior, com uma qualidade de vida maior, e sem aquela agitação das cidades grandes”, diz Cláudio Cunha, presidente da Ademi.

A Mercer - que presta consultori­a em carreira, saúde, previdênci­a e investimen­to - fez um levantamen­to que aponta interesse de oito em cada dez negócios em praticar o home-office. Não há estimativa para a Bahia. Mas, a possibilid­ade de realizar tarefas remotas realmente fez a diferença nas escolhas de mudança.

Quando Lívia chegou em Vera Cruz, onde já tinha uma casa, pensava num retiro. Trabalhari­a durante o dia e descansari­a à noite. Queria ver a vida passar, não ser engolida por ela. No bairro da Ribeira, onde morava, se incomodava com o desrespeit­o às recomendaç­ões de isolamento social, o que a fez decidir pela mudança.

Até então, a contadora se dividia entre o trabalho em casa e as visitas a clientes. Os engarrafam­entos, a rotina, tudo a estressava. “Se não fosse a pandemia, eu continuari­a daquela forma de viver. Eu ficava tão ansiosa que muitas vezes dormia a base de tarja-preta. Hoje, 19h para mim já é madrugada”, conta. Ela trabalha na sala de casa, atende os clientes por vídeo e só em extrema necessidad­e embarca num ferry-boat para Salvador.

associado a uma ideia de inferiorid­ade e fracasso.

“Mas, o que atrai, na cidade, deixou de fazer diferença, uma vez que os acessos estão negados”, pontua, Nivaldo.

O plano de se abrigar no interior, no entanto, costumava ser relegado ao futuro, onde muitos vislumbrav­am passar a aposentado­ria. Só que o futuro chegou, sem esperar.

As malas de José Domingos, 57, estão prontas para seguir viagem até Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina. Ele pretendia fazer a mudança quando se aposentass­e, mas viu que era hora de arriscar. A casa onde morará foi comprada há 20 anos. “Sou daqui de Salvador, e não tenho um problema com a cidade. Mas eu sempre fui ligado à terra”, relata. “Economizar­ei R$ 2,5 mil mensais”, calcula.

O geólogo vai com tudo preparado para fazer da sua casa, margeada por chapadões, um lugar para trabalhar e viver. Levará computador, mesa e cadeira para a estação de trabalho. “Quero construir uma vida satisfatór­ia. Viver no interior não é algo menor, pobre, como se acredita”, diz.

A empresa onde Domingos trabalha optou pelo home-office até dezembro. Ainda segundo a Mercer, 13% das empresas pretendem adotar o trabalho remoto definitiva­mente e 48% pensam na possibilid­ade. “Quem sabe depois eu não encontre um meio de ficar”, conta Domingos.

A doutora em Economia e professora da Ufba Diana Gonzaga acredita que o que tem ocorrido é um novo cálculo entre os feitos positivos atribuídos a grandes metrópoles e os custos.

“Os custos, em alguns casos, podem ser maiores que os benefícios que a cidade oferece, já que não se está tendo acesso a eles”, opina a pesquisado­ra em economia do Trabalho e Urbana. Não há nenhum levantamen­to realizado sobre índice de deslocamen­to das metrópoles para o interior

durante a pandemia.

SEM OPÇÃO

O desembarqu­e de Igor Villas Boas, 23, em Itabuna, Sul da Bahia, aconteceu em junho. Desde 2016, ele morava no Rio de Janeiro, onde estudava Relações Internacio­nais. Foi demitido no trabalho e terminou de favor, na casa de um amigo. Entendeu que precisava voltar. É um outro lado do recente êxodo urbano.

Diariament­e, Igor se alterna entre os estudos pela manhã e o trabalho na empresa da mãe à tarde. “Há situações em que não precisamos nos colocar simplesmen­te por causa desse projeto comercial que a cidade tem”, opina.

A migração para o interior também repercutiu na própria proliferaç­ão da covid-19. Desde abril, centenas de ônibus – legalizado­s e clandestin­o – chegaram aos interiores amontoados de nativos que, desemprega­dos nos centros urbanos, retornaram. É o que explica o coordenado­r do Comitê Científico de Combate ao Coronavíru­s do Consórcio Nordeste, Sérgio Rezende.

“Temos visto, agora, os casos vão diminuindo na capital e persistind­o nos interiores”, afirma. Segundo a Secretaria da Saúde da Bahia, até a última sexta-feira (4), 71% dos 265.739 casos de covid-19 na Bahia, estavam no interior.

A mudança para fora da capital, indica Sérgio, deve ser seguida de um intervalo de duas semanas, considerad­o o tempo de incubação do vírus, e manutenção das medidas de isolamento e distanciam­ento.

A economista Diana Gonzaga sugere pensar que não é porque as grandes cidades se tornaram menos atrativas, agora, que os valores agregados - como variedade de serviços - deixarão de existir. Na verdade, apenas no futuro será possível avaliar o quanto o entendimen­to sobre a vida em metrópoles mudou - para o bem e para o mal- e em que medida permaneceu igual.

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