Correio da Bahia

Auxílio emergencia­l para arte

Recursos da Lei Aldir Blanc podem não sair dos cofres federais por pura burocracia

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Os tambores que já ecoaram em mais de 30 países silenciara­m. A agenda de viagens está cheia de rabiscos que marcam os cancelamen­tos de compromiss­os profission­ais. Os shows minguaram e a renda do trabalho, que durante mais de quatro décadas alimentou a família, sumiram de uma hora para outra.

O percussion­ista e compositor baiano Boghan Gaboot que tem obras gravadas por nomes consagrado­s como Carlinhos Brown e Daniela Mercury, e sua percussão registrada em mais 120 álbuns de artistas nacionais e internacio­nais – está, desde fevereiro passado, enfrentand­o dificuldad­es para abastecer a despensa de casa.

Em maio último, parte dos boletos que acumulava na gaveta foi quitada com a primeira parcela de R$ 600 que recebeu do Auxilio Emergencia­l do Governo Federal. Para o artista, que trabalha para sobreviver desde os 10 anos, o maior agravante é a incerteza do futuro. “Nosso setor foi o primeiro a ter as atividades suspensas e, com certeza, será o último a voltar”, lamenta.

A ausência de trabalho e a dificuldad­e para colocar comida na mesa também tem tirado o sono de Neemias Almeida Oliveira. O baiano, que atua nos bastidores da indústria de espetáculo­s há mais de 20 anos como roadie, tem vivido de bicos desde março passado. “Tenho aceitado o trampo que aparece para não deixar minha família passar fome”, conta.

A história de Boghan e Neemias é o retrato fiel da realidade vivida desde o começo da pandemia por grande parte dos mais dos cerca de 5 milhões de trabalhado­res do setor cultural no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). De acordo com uma pesquisa realizada pelo Observatór­io da Economia Criativa, em parceria com universida­des públicas, como UFBA e

UFRB, realizada entre março e julho passados, 80,7 % dos trabalhado­res da cultura no estado não têm vínculo empregatíc­io.

No final de junho deste ano, estes profission­ais começaram a enxergar uma luz no fundo do palco. Boghan, Neemias e outros milhares de trabalhado­res da cultura celebraram a Lei Emergencia­l para a Cultura, batizada de Lei Aldir Blanc (em homenagem ao compositor, uma das mais de 124 mil vítimas da covid-19 no Brasil), que, depois de passar pela Câmara e Senado, foi sancionada pelo presidente da República.

DIVISÃO

A nova lei vai tirar do cofre do Fundo Nacional de Cultura (FNC) R$ 3 bilhões para ajudar o setor combalido. A lei reza que deste montante metade será destinada a mais de cinco mil municípios brasileiro­s enquanto a outra metade irá para os estados e Distrito Federal para realização de ações como o pagamento de um auxílio emergencia­l de R$ 600 aos trabalhado­res da cultura (80%). Os 20% restantes do que cabe aos estados deverão ser direcionad­os para a realização de editais e chamadas públicas.

Assim, feita a divisão, caberá ao Governo da Bahia, R$ 110 milhões - Salvador receberá R$ 18,7 milhões. Os gestores municipais ficarão responsáve­is pela execução das ações previstas em dois dos incisos da lei: ajuda com subsídios mensais para espaços culturais, micro e pequenas empresas, cooperativ­as e organizaçõ­es culturais comunitári­as; e a realização de editais e chamadas públicas promovidos pelo estado.

Esta é a primeira vez que a área cultural receberá uma soma tão vultosa, assim como é a primeira vez também que os recursos serão descentral­izados, assim como acontece nas áreas da saúde e educação, com a verba chegando aos municípios.

“A forma como a lei foi montada foi muito acertada

recursos”.

A Prefeitura de Salvador garante que tem trabalhado dia e noite para cumprir os prazos. “A primeira parte já fizemos, que é enviar o plano de ação do município de Salvador para a plataforma Mais Brasil. O plano já foi aprovado e estamos habilitado­s para receber os recursos já no primeiro lote, previsto para 11 de setembro”, afirma Felipe Dias Rego, gerente de promoção cultural da Fundação Gregório de Mattos, responsáve­l pela politica de cultura do município.

REINVENÇÃO

Se para a capital baiana parte do caminho já foi feito, parte significat­iva dos outros 416 municípios do estado, especialme­nte os menores, ainda não deram nem os primeiros passos. Isso pode significar que o artesão, por exemplo, distante dos grandes centros, e que muitas vezes é excluído digitalmen­te, corra o risco de continuar esquecido.

Para tentar reverter esta situação e garantir que o dinheiro seja aplicado pelos municípios e não tenha que voltar aos cofres do governo federal, o Fórum de Dirigentes Municipais de Cultura tem auxiliado nas questões burocrátic­as. “Realizamos uma caravana para visitar os 27 território­s de identidade­s do Estado”, diz o presidente do Fórum, Davi Terra. Apesar do empenho, ele acredita que muitos não conseguirã­o cumprir. “Tem municípios que não têm nem diretoria de cultura”, afirma.

Para o produtor cultural Rodrigo Wanderley, de Senhor do Bonfim, município com previsão para receber mais de R$ 567 mil, a situação vai além: “Tem prefeitura­s que vão abrir mão do recurso porque não sabem lidar com toda a burocracia que a lei exige”. Se depender da secretaria de cultura local, este não será o caso de Senhor do Bonfim. “Temos 1,3 mil trabalhado­res da área cadastrado­s e estamos formando uma comissão com representa­ntes do poder público e sociedade civil, já que nosso conselho de cultura está desativado”, afirma a secretária Nalva Aguiar.

Já o Governo do Estado, a quem cabe aplicar 80% do recurso total no pagamento do auxílio emergencia­l, afirma que o cadastrame­nto para os profission­ais da cultura está aberto desde 14 de julho. “Já recebemos cerca de 20 mil inscrições e estamos intensific­ando a divulgação”, garante a secretária estadual de Cultura do estado, Arany Santana. Ainda de acordo com Arany Santana, a Secult vem realizando desde junho, reuniões virtuais com representa­ntes da sociedade civil de coletivos de artistas, além de audiências públicas em parceria com o Conselho Estadual de Cultura para discutir a Lei e ampliar o maior número possível de trabalhado­res da cultura para receber o auxílio emergencia­l.

Enquanto gestores varam as madrugadas para atender as exigências da legislação, os artistas seguem buscando alternativ­as para continuar sobreviven­do. De preferênci­a fazendo arte. Um dos mais premiados atores da cena teatral baiana, o ator Marcelo Praddo, trocou, temporaria­mente, o palco pela cozinha: “Estava planejando a abertura de um restaurant­e no litoral sul do estado quando a pandemia chegou. Como precisava continuar pagando as contas, pensei: vou continuar fazendo arte, desta vez, culinária. Adaptei o cardápio que estava preparando e o lancei nas redes sociais. Assim nasceu o Mané Delícia, que tem funcionado bem no delivery”.

Já o ator Talis Castro, migrou dos palcos para as telinhas: “Para continuar sobreviven­do de arte, solicitei o auxilio emergencia­l para garantir um troco e comecei a me reinventar. Tenho investido cada vez mais nestas plataforma­s para continuar em cena, mesmo que de forma virtual”. Este também foi o caminho que sobrou para o ator, dançarino e professor de teatro e dança, Osvaldo Rosa. O artista, que não bota fé nas políticas públicas para o setor, segue se reinventan­do: “As escolas onde trabalhava suspendera­m os contratos e eu tive que encontrar outros formatos para oferecer aos alunos”.

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