A intolerância religiosa agride axé da Bahia
Casos de desrespeito e violência contra o Candomblé crescem mesmo com pandemia
Até o dia 13 de janeiro, a Promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia (MPBA) tem registrados 130 procedimentos sobre intolerância religiosa. No ano passado, 80% dos casos de intolerância religiosa na Bahia atingiram terreiros de Candomblé e 60% das pessoas que registraram as queixas informaram ser da cor preta. Em 2019, o MPBA recebeu 107 denúncias e, entre 2017 e 2018, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi) percebeu aumento de 124% nesses crimes no estado. Nos seis anos, por sua vez, o crescimento foi de 2.250%.
Muito além da frieza dos números se escondem crimes que derivam do racismo estrutural em plena Bahia, terra conhecida como acolhedora e abençoada pelo axé, mas que também está contaminada por ódio. Hoje, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, falar do tema é necessário e, ao mesmo tempo, sofrido para quem professa a fé nos orixás.
A data foi escolhida em homenagem a ialorixá Mãe Gilda, falecida em 1999 depois que teve seu terreiro, o Ilê Axé Abassá de Ogum, invadido e depredado por representantes da Igreja Universal do Reino de Deus. A história, infelizmente, não parou por aí. Em 2016, o busto de Mãe Gilda no Parque do Abaeté foi danificado e teve que passar por reforma. Em julho do ano passado, o monumento foi novamente atacado com pedras por um homem que dizia fazer isso a “mando de Deus”.
A ialorixá Jaciara Ribeiro, 53 anos, filha de Mãe Gilda, lembra que o 21 de janeiro tem dois fortes significados: “a luta, que eu estou há 21 anos nessa trajetória como ativista, e a dor, porque a minha mãe morreu por conta do ódio. É muito complicado ter a morte física de Mãe Gilda e também a depredação do monumento dela, que é a referência para todas as mulheres negras de candomblé da Bahia, por duas vezes”, desabafa.
ÓDIO NA PANDEMIA
Mãe Jaciara acredita que as pessoas ainda não conseguem associar o ato de intolerância ao crime de violência e os casos continuam mesmo durante a pandemia. “Outro dia, um filho de santo levou uma bofetada na rua porque estava fazendo uma oferenda. Eu também fui maltratada dentro de um laboratório. A atendente ficou orando, me viu negra e com roupa de candomblé, começou a cantar hino de Jesus”, conta.
Para o babalorixá Rychelmy Imbiriba, mestre em estudos étnicos e africanos pela UFBA, a intolerância religiosa começa no racismo. “Temos uma religião que veio para o Brasil trazida pelos negros africanos e que não seguiu os dogmas católicos. Aí vem a demonização da religião e a construção de um imaginário negativo formado com base também no não respeito e na falta de tolerância”, analisa.
O babalorixá lamenta que o ódio persista até hoje, fazendo com que o dia-a-dia dos seguidores de religiões de matriz africana seja marcado pela luta. “Se qualquer um de nós pegar um transporte público, for ao supermercado, vai encontrar alguém que vai gritar, que vai dizer que a gente é do demônio. A gente tem que estar pronto para a luta porque sabemos que ser do candomblé é ter que se posicionar e ir contra essa perseguição", acrescenta.
MARCAS NA ALMA
Toda a luta e todos os episódios vividos diariamente deixam marcas. É nisso que acredita Mameto Kamurici (Lúcia Neves), mãe de santo de 56 anos. Para ela, ter que brigar e pedir por respeito é necessário, mas cansativo. E, inevitavelmente, gera muito sofrimento. “A pessoa que sofre algum ataque na rua acaba levando para dentro de casa, acaba não deixando os filhos saírem para que eles não sejam agredidos. Se a pessoa não estiver firme, entra em depressão, uma falta de autoestima, não enxerga valor em si mesma”, pontua.
A ialorixá Márcia Maria Ferreira, ou Márcia D’Ogun, 56, já perdeu as contas dos episódios que teve de enfrentar e faz questão de enfatizar que um olhar, que muitos acham inofensivo, também pode ferir. Ela, que é mestra em educação, já teve a oportunidade de dar palestras e conta que, muitas vezes, quando chegava com suas vestes ou qualquer outra coisa que a caracterizasse como ialorixá, recebia olhares, ‘de agressividade’. “Apesar dos pesares, sou filha de orixá, respeito a diversidade e exijo que a minha escolha também seja respeitada”, enfatiza.
Toda vez que a gente precisa denunciar, existe um processo de negação e resistência. Quando minha religião é atacada, é atacada a minha integridade moral, a minha liberdade. Isso é muito profundo Rychelmy Imbiriba Babalorixá e mestre em estudos étnicos e africanos pela UFBA
A gente tem relatos de dificuldade de registro de atos de intolerância religiosa nas delegacias de polícia. Então, infelizmente, a gente se depara com situações de tipificação incorreta. Ao invés de intolerância religiosa vai como injúria simples ou mera briga de vizinhos Lívia Vaz Promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia