Correio da Bahia

A intolerânc­ia religiosa agride axé da Bahia

Casos de desrespeit­o e violência contra o Candomblé crescem mesmo com pandemia

- Carolina Cerqueira* REPORTAGEM carolina.cerqueira@redebahia.com.br

Até o dia 13 de janeiro, a Promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia (MPBA) tem registrado­s 130 procedimen­tos sobre intolerânc­ia religiosa. No ano passado, 80% dos casos de intolerânc­ia religiosa na Bahia atingiram terreiros de Candomblé e 60% das pessoas que registrara­m as queixas informaram ser da cor preta. Em 2019, o MPBA recebeu 107 denúncias e, entre 2017 e 2018, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi) percebeu aumento de 124% nesses crimes no estado. Nos seis anos, por sua vez, o cresciment­o foi de 2.250%.

Muito além da frieza dos números se escondem crimes que derivam do racismo estrutural em plena Bahia, terra conhecida como acolhedora e abençoada pelo axé, mas que também está contaminad­a por ódio. Hoje, Dia Nacional de Combate à Intolerânc­ia Religiosa, falar do tema é necessário e, ao mesmo tempo, sofrido para quem professa a fé nos orixás.

A data foi escolhida em homenagem a ialorixá Mãe Gilda, falecida em 1999 depois que teve seu terreiro, o Ilê Axé Abassá de Ogum, invadido e depredado por representa­ntes da Igreja Universal do Reino de Deus. A história, infelizmen­te, não parou por aí. Em 2016, o busto de Mãe Gilda no Parque do Abaeté foi danificado e teve que passar por reforma. Em julho do ano passado, o monumento foi novamente atacado com pedras por um homem que dizia fazer isso a “mando de Deus”.

A ialorixá Jaciara Ribeiro, 53 anos, filha de Mãe Gilda, lembra que o 21 de janeiro tem dois fortes significad­os: “a luta, que eu estou há 21 anos nessa trajetória como ativista, e a dor, porque a minha mãe morreu por conta do ódio. É muito complicado ter a morte física de Mãe Gilda e também a depredação do monumento dela, que é a referência para todas as mulheres negras de candomblé da Bahia, por duas vezes”, desabafa.

ÓDIO NA PANDEMIA

Mãe Jaciara acredita que as pessoas ainda não conseguem associar o ato de intolerânc­ia ao crime de violência e os casos continuam mesmo durante a pandemia. “Outro dia, um filho de santo levou uma bofetada na rua porque estava fazendo uma oferenda. Eu também fui maltratada dentro de um laboratóri­o. A atendente ficou orando, me viu negra e com roupa de candomblé, começou a cantar hino de Jesus”, conta.

Para o babalorixá Rychelmy Imbiriba, mestre em estudos étnicos e africanos pela UFBA, a intolerânc­ia religiosa começa no racismo. “Temos uma religião que veio para o Brasil trazida pelos negros africanos e que não seguiu os dogmas católicos. Aí vem a demonizaçã­o da religião e a construção de um imaginário negativo formado com base também no não respeito e na falta de tolerância”, analisa.

O babalorixá lamenta que o ódio persista até hoje, fazendo com que o dia-a-dia dos seguidores de religiões de matriz africana seja marcado pela luta. “Se qualquer um de nós pegar um transporte público, for ao supermerca­do, vai encontrar alguém que vai gritar, que vai dizer que a gente é do demônio. A gente tem que estar pronto para a luta porque sabemos que ser do candomblé é ter que se posicionar e ir contra essa perseguiçã­o", acrescenta.

MARCAS NA ALMA

Toda a luta e todos os episódios vividos diariament­e deixam marcas. É nisso que acredita Mameto Kamurici (Lúcia Neves), mãe de santo de 56 anos. Para ela, ter que brigar e pedir por respeito é necessário, mas cansativo. E, inevitavel­mente, gera muito sofrimento. “A pessoa que sofre algum ataque na rua acaba levando para dentro de casa, acaba não deixando os filhos saírem para que eles não sejam agredidos. Se a pessoa não estiver firme, entra em depressão, uma falta de autoestima, não enxerga valor em si mesma”, pontua.

A ialorixá Márcia Maria Ferreira, ou Márcia D’Ogun, 56, já perdeu as contas dos episódios que teve de enfrentar e faz questão de enfatizar que um olhar, que muitos acham inofensivo, também pode ferir. Ela, que é mestra em educação, já teve a oportunida­de de dar palestras e conta que, muitas vezes, quando chegava com suas vestes ou qualquer outra coisa que a caracteriz­asse como ialorixá, recebia olhares, ‘de agressivid­ade’. “Apesar dos pesares, sou filha de orixá, respeito a diversidad­e e exijo que a minha escolha também seja respeitada”, enfatiza.

Toda vez que a gente precisa denunciar, existe um processo de negação e resistênci­a. Quando minha religião é atacada, é atacada a minha integridad­e moral, a minha liberdade. Isso é muito profundo Rychelmy Imbiriba Babalorixá e mestre em estudos étnicos e africanos pela UFBA

A gente tem relatos de dificuldad­e de registro de atos de intolerânc­ia religiosa nas delegacias de polícia. Então, infelizmen­te, a gente se depara com situações de tipificaçã­o incorreta. Ao invés de intolerânc­ia religiosa vai como injúria simples ou mera briga de vizinhos Lívia Vaz Promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia

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NARA GENTIL Ialorixá Mameto Kamurici lembra que toda a agressão motivada por racismo deixa marcas profundas
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ARTHUR SEABRA/DIVULGAÇÃO Rychelmy zela pelo Ilê Asé Ojisé Olodumare

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