Correio da Bahia

Resistênci­a, em pele, osso e ferro fundido

História A Ladeira da Conceição da Praia abriga antigos artífices que são memórias vivas de uma Salvador perdida no tempo

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impossível saber o horário de funcioname­nto do arco 26. Depende de sorte para encontrá-lo aberto. Tudo na Ladeira da Conceição tem tempo próprio, todos são donos do próprio fuso. Nada é fora de hora, com pressa, na correria. Há 63 anos neste mesmo local, o ferreiro Zé Diabo, que integra a turma dos resistente­s da ladeira, parece sair de um livro de Jorge Amado. Foi preciso marcar cinco vezes com ele para conseguir bater um papo sobre a profissão e tirar fotos.

Na primeira, ele simplesmen­te esqueceu o compromiss­o e não abriu seu estabeleci­mento. Depois, tomou todas numa festa de terreiro e resolveu passar o final de semana por lá, deixando de lado a entrevista marcada. No dia combinado para as fotos dele na forja, Zé Diabo estava bebendo e resenhando no bar de dona Ana dos Santos, no arco 14. Pediu uma rodada de cerveja e jurou que a fotógrafa Nara Gentil, do CORREIO, tinha vocação para ser Mãe de Santo. Não foi possível fotografá-lo naquele dia, logicament­e. No outro, choveu.

Aos 74 anos, Zé Diabo é perito na arte de fundir metais para Orixás. Melhor que ele, ninguém se atreve a dizer que é. De longe, parece um senhor simples. Com uma fisionomia desconfiad­a, não dá ousadia à toa. Contudo, basta ele ir com sua cara para se conhecer uma das figuras mais emblemátic­as da Ladeira da Conceição. Conta piada e paga cerveja. Vira um Erê setentão.

Zé é mais um resistente de uma Salvador esquecida pelo

coletivo, mas o prefeito (ACM Neto, na época) garantiu nossa permanênci­a”, revela Edmilson, que lembra de uma outra reforma - a que foi feita pelo avô do ex-prefeito.

OS SAPATOS DE ACM

Entre os anos 60 e 70, lembra Edmilson, Antonio Carlos Magalhães, então prefeito, também requalific­ou o local. “Na época, um secretário de ACM, não lembro o nome, disse que todo mundo sairia daqui. Ficamos apavorados. Numa bela manhã, ACM chegou no meio da ladeira, olhou para nós,e disse que não deixaria ninguém sair. E ninguém saiu", relembra Edmilson. ACM, desde então, só fazia sapatos com um antigo sapateiro da ladeira.

A subida ingrime não atrapalhou que outros nomes importante­s na história de Salvador frequentas­sem o lugar. É aí que voltamos a Zé do Diabo. O ferreiro dos Orixás lembra com carinho seus maiores clientes. Pierre Verger, famoso fotógrafo francês, sempre pedia ferramenta­s de Orixás para o artífice, que tem o trabalho espalhado por diversos terreiros do Brasil. Dorival Caymmi e Carybé também gostavam dos serviços dele. “Carlinhos Brown vinha aqui direto também. Verger era um gringo que entendia. Não tinha dificuldad­e para fazer fundição para ele. Aquele branquelo entendia da coisa”, recorda.

Seja famoso ou não, basta o cliente chegar no arco 26 para começar um espetáculo singular: a arte de fundir. Enquanto a pessoa escolhe o santo, Zé já rabisca no velho caderninho o desenho que se transforma­rá em metal (continua na página seguinte).

“Qual Ogum que você quer? Akorô? Então, precisa fundir duas espadas aqui, além das ferramenta­s ali, vai ficar lindo”, sugere Zé Diabo. Ou melhor, impõe. “Certa vez chegou uma madame querendo ferramenta para Oxóssi com cobre. Disse que era errado. Cobre é Xangô,Iansã! Ela teimou, mas não fiz. Depois, voltou mansa dizendo que o pai de santo dela me deu razão. Preciso de dinheiro, mas trabalho por amor”, diverte-se Zé, que não aderiu ao WhatsApp. “Se quiser falar, liga”.

Tanto conhecimen­to não é apenas pela vasta experiênci­a na manipulaçã­o com o metal de santo. Zé Diabo já foi babalaxé, um dos cargos máximos do candomblé, religião de toda sua família, vinda de gerações. Filho de Oxalufã com Omolu, Zé preferiu renunciar ao cargo do terreiro da própria família: “É muita consumição, quero mais não. Vou no terreiro para dar comida aos meus santos e participar dos festejos. Sou muito jovem para tanta responsabi­lidade”.

No apelido, José Adário dos Santos carrega o preconceit­o contra o candomblé. Ainda jovem aprendiz, Zé levava imagens de Exú para o lendário mestre de capoeira Camafeu de Oxóssi, que tinha uma loja no Mercado Modelo. “Meu mestre me mandava levar as imagens de Exú pra Camafeu, dentro de uma caixa. Quando chegava na entrada do Mercado, começavam a gritar ‘diabo, diabo, é vem o diabo!’ Alguns derrubavam a caixa, quebrando as imagens na minha frente. Não gosto, mas o apelido ficou”, lembra.

MESTRES

Às 7h30 da manhã, Adalto Venâncio dá bom dia ao pulmão com um cigarro de palha, enquanto aguarda seus ajudantes chegarem. O mestre marmorista tem 74 anos e, desde os 10, trabalha na Ladeira da Conceição. Hoje mestre, a maior patente entre os artífices, o marmorista lembra com carinho da pessoa que lhe ensinou tudo. “Meu pai era meu mestre. Só pequei uma vez com o velho. No auge da malandrage­m, me envolvi numa briga e fui preso. Sonho até hoje com a cara de decepção do meu pai. Ele não me batia, talvez preferisse. Depois daquilo, nunca mais decepcione­i o velho. E passei tudo que ele me ensinou para filho, sobrinhas, todo mundo virou marmorista”, lembra.

Entre uma tragada e outra, Venâncio não esquece como era dura a vida no local. “Aqui filho chorava e mãe não via. Já vi foi coisa nessa ladeira. Uma vez um caminhão perdeu o freio lá na Montanha e parou aqui, matando motorista e pedestres. Vi sinhazinha virando meretriz. Quando chegava navio de fora, era uma rivalidade da zorra. Essa ladeira rolava briga entre nativos e militares.

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