Correio da Bahia

Pandemia das birras e das manias

Depois de 10 meses, famílias veem mudanças no comportame­nto das crianças. Especialis­tas enxergam como sintoma do confinamen­to

-

Afesta seria com o tema da Mulher Maravilha. Estava tudo pronto: painel, vela, topo do bolo, tudo personaliz­ado. Mas, desde o dia 23 de março do ano passado, quando Maria Heloísa comemorari­a 5 anos, tudo foi guardado em caixas pela mãe, a pedagoga Fernanda Rufino, 38. Desde então, Maria Heloísa deixou de fazer muita coisa: de ir à escola, ao zoológico, ao parquinho e de encontrar outras crianças.

No lugar da festa de aniversári­o e das saídas, veio a frustração. E, aos poucos, ao longo dos meses, Fernanda notou que o comportame­nto da filha mudava. Chegaram as birras, as barganhas e até uma certa irritabili­dade. Agora, se precisa fazer alguma atividade do dia a dia - como arrumar a cama ou escovar os dentes, por exemplo - Maria Heloísa quer algo em troca. Pede à mãe um doce ou um brinquedo.

“Ela quer algo em troca por algo que é da responsabi­lidade dela. Antes, ela tinha a garantia do final de semana, da bicicleta no final da tarde. Hoje, tudo que a gente pede para que ela faça, ela questiona”, conta a pedagoga.

Só que essa mudança não aconteceu só na casa de Fernanda e Maria Heloísa. Esse é um fenômeno mais amplo e complexo, que está se tornando cada vez mais comum, à medida que a pandemia da covid-19 continua impondo restrições necessária­s para evitar a propagação da doença. Depois de 10 meses, é difícil até encontrar famílias que não tenham tido que lidar com situações assim.

No consultóri­o da psicóloga clínica Isabella Barreto, a frequência dos pacientes com esses relatos surpreende. “Não só a frequência assusta, como a intensidad­e. São crianças e adolescent­es com oscilações de humor, sono irregular, irritabili­dade, ansiedade, tédio, estresse, falta de concentraç­ão. Alguns comem demais, outros não querem comer”, cita.

SINTOMA

Para ela, é preciso compreende­r que a birra, na verdade, é um sintoma. “Quando a criança não quer fazer nada, faz parte de uma falta de estrutura para lidar com tudo isso. Ela não tem a consciênci­a que um adulto tem”, pondera.

Reconhecer que esse tem sido um momento difícil para adultos e crianças é o primeiro passo. Por isso, Isabella defende que é preciso acolher. Esse cuidado é uma das abordagens que Fernanda tem tentado com a filha.

No ano passado, Fernanda sentiu que estava dando o seu máximo no acompanham­ento escolar de Maria Heloísa. Sem contato com outras crianças na escola, a menina também não tem irmãos. Em casa, são apenas as duas.

o celular, conversar muito e deixar deitada no quarto para refletir”, afirma Dayanne.

A relação com outras crianças também mudou. Se, eventualme­nte, Liz encontrar alguém, vai ficar feliz. No entanto, não seria estranho se começassem uma briga pouco depois. Nas aulas virtuais, outra luta diária. Com preguiça de acordar cedo, vez ou outra Liz acabava de mau humor. Para contornar esses efeitos, a mãe tornou a rotina da filha mais dinâmica.

“Como ela estava em fase de alfabetiza­ção, precisei pagar uma banca para ser mais fácil esse processo. E melhorou muito, porque ela aprendeu a ler e a escrever na pandemia. Matriculei no teatro, para que ela tivesse entretenim­ento e aprendizad­o também. Ela tem curtido”, conta.

Já a professora Iane Carneiro, 34, percebeu logo que a filha, Beatriz, estava demandando mais atenção. Filha única, a menina começou a requisitar muito mais a companhia da mãe quando percebeu que os pais estavam ficando mais em casa, em Feira de Santana.

“Eu estava trabalhand­o de forma remota e ela não estava aceitando o período que eu tinha que ficar em reunião. Achava que eu tinha que ficar só para ela”, diz Iane.

Na creche onde Beatriz estudava, não houve aulas remotas. Por ser professora, Iane decidiu estimular a filha em casa. Foi quando percebeu mais uma diferença no comportame­nto da menina. Se, antes da pandemia, Beatriz era sempre disposta a aprender, a coisa tinha se invertido. “Se eu peço para ela fazer uma letra para escrever o nome, ela quer desenhar. Quando é para desenhar, ela faz o contrário”.

Beatriz já estava comendo sozinha e não tinha problemas para dormir. Nos últimos tempos, porém, Iane precisa dar a comida ou ficar ao lado até a filha adormecer. “Desde o início, a gente conversa muito com ela, porque ainda não flexibiliz­ei o encontro com outras crianças. Só flexibiliz­ei com minha mãe e minha sogra porque ela estava sentindo muita falta. Mas enquanto o cenário for esse, é difícil de mudar”.

Nesse contexto, é importante entender a birra como um comunicado da criança de que algo não vai bem. O alerta é da orientador­a parental Larissa Machado, mestre em Psicologia da Educação pela Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp). “Mesmo que seja uma manifestaç­ão inadequada, ela está manifestan­do algo”, pontua.

Uma maneira de acolher esse comportame­nto é admitir que também sente medo. “A família pode conduzir isso perguntand­o se a criança quer ir para algum lugar ficar mais calmo ou se quer um abraço. Pode dar um ‘não’, mas dar outros ‘sim’”, completa.

 ?? ACERVO PESSOAL ?? Dayanne matriculou a filha Liz no teatro para ela se entreter e aprender
ACERVO PESSOAL Dayanne matriculou a filha Liz no teatro para ela se entreter e aprender
 ?? ACERVO PESSOAL ?? Amanda decidiu procurar um psicólogo para o filho Lucca
ACERVO PESSOAL Amanda decidiu procurar um psicólogo para o filho Lucca

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil