Fatos, fofocas e homenagens
Cultura Biografia de Belchior fala sobre o sumiço do artista dez anos antes de morrer
O que levou o cantor Belchior a deixar o sucesso para trás, aos 60 anos, rumo a uma jornada anônima pelo sul do país que terminou com sua morte, dez anos depois? Isso é o que conta a biografia Viver é Melhor que Sonhar – Os Últimos Caminhos de Belchior (Sonora Editora), dos jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Em campanha de financiamento coletivo, o livro em fase de finalização está com pré-venda no site benfeitoria.com.
Road book, a obra percorre o caminho feito por Belchior dez anos antes de sua morte, na tentativa de compreender o que o fez mergulhar no exílio. Sem explicar a ninguém o motivo de seu sumiço, o cantor cearense deu apenas um telefonema aos filhos, atravessou dezenas de cidades, dormiu em locais abandonados, dependeu de caridade e chegou a ser expulso por quem o abrigou.
Autor de sucessos como Apenas um Rapaz Latino-Americano e Como Nossos Pais, Belchior viajou em companhia de uma nova produtora e também amante, Edna Assunção de Araujo, a Edna Prometheu. Os dois percorreram cidades como Montevidéo (Uruguai), Porto Alegre e Sobral. Os autores repetiram os passos: foram mais de 10 mil quilômetros e mais de 150 entrevistas com quem conviveu com o cantor – da freira, ao hippie.
“É um artista muito instigante da música brasileira, com uma produção de muita qualidade e de um gesto muito ousado dentro do showbusiness”, destaca o autor mineiro Marcelo Bortoloti, 45 anos. “O fato de ter desaparecido sem dar notícia, ter rompido com a sociedade, instiga questões: por que agiu assim?”, provoca.
SUMIÇO
O livro não traz respostas, mas hipóteses construídas a partir do relato de quem conviveu com Belchior. A ideia do projeto, que já existia antes do artista morrer, em 2017, era entrevistar as pessoas até chegar nele. “Com sua partida, os personagens dessa história estavam mais sensíveis a abrir o coração para contribuir com nosso trabalho”, comenta Chris Fuscaldo, 40.
Dessa forma, os autores entraram “para valer” nos lugares por onde o cantor passou. Especialmente em San Gregorio de Polanco, no Uruguai, “onde Belchior e Edna foram muito felizes” até serem descobertos pela imprensa. “Ficamos hospedados na mesma ‘cabaña’. Foi emocionante, porque além de pesquisadores somos fãs também”, conta Chris, que escuta o artista desde pequena.
Também autora de uma biografia de Zé Ramalho, em andamento, Chris conta que se viu instigada a refletir sobre a atitude que Belchior teve de abrir mão de sua carreira. “Uso a palavra ‘suposto’ porque eu sempre acreditei que ele não sumiu, apenas optou por outro estilo de vida, que não foi aceito pela mídia, que passou a chamar de ‘sumiço’”, pondera.
A autora esclarece que não é contra as matérias que foram veiculadas no período, mas é contra a forma como Belchior “foi criminalizado na maior parte delas”. Chris acrescenta que achou desrespeitosas as vezes em que ele e Edna disseram que não queriam falar e ainda assim foram perseguidos por jornalistas. “Tem uma cena que foi fotografada deles fugindo pelas ruas de Porto Alegre. Os rostos entregam o desconforto”, lamenta.
PICUINHA
Uma das partes mais difíceis do processo de construção do livro foi, portanto, lidar com a linha tênue entre fofocas e fatos. “Perceber o quanto a mídia pode ser cruel com os seres humanos me fez repensar toda a minha carreira. Aprofundar minhas pesquisas e apurações é o melhor caminho para evitar sofrimentos como os que eles viveram”, reflete.
Marcelo conta que usou o bom senso na hora de separar fofocas e fatos, mas tiveram coisas que não pôde evitar. “Para mim foi uma história edificante. E como toda história, tem lados mesquinhos. Agora, explicar essa trajetória a partir das picuinhas seria muito pequeno. Belchior é maior. É um exemplo humano”, elogia o autor.
Então, Marcelo reforça que o cantor era “uma criatura complexa, intelectual e profunda”. “Mas existe por trás dessa complexidade um desejo de liberdade, de rompimento com determinado tipo de padrão de vida que é o do sucesso almejado pela maioria da sociedade. Ele é corajoso em ir na contramão e abandonar tudo isso”, defende.
Jornalista e autor do livro
Jornalista e autora do livro