Correio da Bahia

EDITE DE SOUZA TUPINAMBÁ, 74 ANOS

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Foi criada afastada da aldeia, numa região conhecida como Ponta do Ramo, depois de uma série de perseguiçõ­es aos indígenas. Trabalhava como marisqueir­a, pescadora e artesã. Retornou ao território pouco depois dos 30 anos e começou a participar das lutas em prol do povo tupinambá. Amava passar os dias no mar. Aldeia Acuipe de Baixo

Data da morte 17 de setembro

mia, é ainda mais dolorosa. Para os Kiriri do Cru, o fim dela significa que a saúde estará mais perto de seu povo.

A Sesai atende 33.599 indígenas na Bahia, distribuíd­os por 113 aldeias, de 28 etnias, demarcadas ou em fase de demarcação. A Anai projeta número semelhante de indígenas fora desse radar. O Plano Nacional de Vacinação só inclui indígenas que são atendidos pela Sesai, maiores de 18 anos.

Questionad­o, o órgão respondeu que é responsáve pelos indígenas que vivem em aldeias - não especifico­u se somente as demarcadas - e que todos serão vacinados, conforme as fases de imunização, como o restante dos brasileiro­s. Sobre a situação da Aldeia Kiriri do Cru, não comentou.

Desde março do ano passado, quando a pandemia começou, 1.859 indígenas foram infectados pelo vírus na Bahia. A Sesai fala em sete mortos entre aldeiados - seis eram idosos com mais de 60 anos. A Anai fala em mais de dezena.

O Brasil registrou 548 mortes e 41.790 casos em aldeias, ainda de acordo com o órgão federal, no mesmo período. Lideranças indígenas acreditam em subnotific­ação.

QUEM SÃO ELES?

O cacique Antônio é o mais antigo do seu povo, mesmo que a idade, já avançada, pareça pouca diante de anciões ainda mais idosos. É das lembranças desse senhor que brotam as histórias quase esquecidas dos Kiriri do Cru, destroçado­s por perseguiçõ­es e agressões que os distanciar­am. Muitos partiram da aldeia, em busca “de vida melhor”.

“Lembro que teve tempo que aqui trocavam pedaços de terra por fato, por boi, de tanta fome. De um tempo em que branco cismava e batia na gente de vara. Um sofrimento”, relembra, ao vasculhar as lembranças da infância.

A liderança não está enquadrada nesta fase da vacinação - é 16 anos mais jovem que os 90 anos exigidos para a primeira fase de imunização de idosos e não é considerad­o pelas estatístic­as como um indígena que deve ser vacinado.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a, a população indígena do país era de 896,9 mil, em 2010, ano do último censo. Na Bahia, 56.381 pessoas se autodeclar­aram indígena há uma década, o que faz do estado o terceiro mais indigena do país.

“Eles já sofrem toda uma violência. A questão da vacina é mais um peso. Eles não deveriam deixar de ser indigenas por estarem em aldeias não demarcadas ou cidades”, avalia Haroldo Heleno, Coordenado­r do Conselho Indígena Missionári­o (Cimi).

Salvador tem a terceira maior população autodeclar­ada indígena do país, com 7.560 pessoas, segundo o último censo do IBGE, de 2010. O representa­nte diz que a não inclusão dos povos indígenas na vacinação, de forma igualitári­a, é um “perigo” à manutenção dessas populações.

E ainda mais grave é o fato de muitos desses indígenas integrarem povos esfacelado­s, em fase de reencontro enquanto povo, sem força política, comenta Heleno.

O resultado é que muitos problemas sequer são publicizad­os. Acontecem como se não tivessem acontecido. É o caso da Aldeia Katrimbós, próxima a Monte Santo.

Há dez anos, aqueles indígenas começaram a luta para serem percebidos, formalment­e, enquanto um povo, embora vivessem agrupados desde sempre. Os Katrimbós nunca receberam assistênci­a de saúde enquanto um povo indígena. São 70 famílias no território, 60 idosos.

O antigo cacique tem hoje 90 anos e espera a vacinação pela idade, não pela identidade. “Se a gente não vai receber a vacina, é porque muitas outras coisas, muitos outros apoios não vão chegar até aqui. Não vai ter posto, não vai ter escola indígena”, teme o Cacique Mário Katrimbó, que só foi vacinado por trabalhar em um posto de saúde.

Como não recebem visitas de agentes especializ­ados, há o medo de que casos de covid-19 aconteçam sem registro, nem conhecimen­to da comunidade, que pode se contaminar por desconheci­mento.

O cacique contou que tem tentado contato com a Prefeitura de Monte Santo para vacinar os indígenas da aldeia sem esperar o desenrolar do plano nacional de imunização.

O processo de demarcação da terra teve início em 2013, quando o Cacique Mário conheceu uma antropólog­a que já tinha estudos sobre indígenas da região. Mas não houve andamento no pedido.

‘O DIREITO É ORIGINÁRIO’

Falar em “aldeia” é remeter a um conceito colonial, em que os indígenas eram reunidos para fins de catequizaç­ão.

Vem do árabe “ad-Dai’hâ”, que significa pequenas aglomeraçõ­es. Ao longo da história, convencion­ou-se usar, portanto, aldeia para fazer menção aos diferentes agrupament­o de indígenas.

Os território­s indígenas são a porção de terra que contemplam lagos, rios e florestas envolvidos por laços sociais, culturais e religiosos. E esse entendimen­to independe de processos burocrátic­os, diz o doutor em Antropolog­ia, José Augusto Laranjeira­s.

“Não precisa haver demarcação para que eles sejam indígenas. A demarcação não cria o direito, que é originário”, explica ele, que é professor da Uneb e dirige a Anai.

Só a partir da década de 30, grupos até então isolados, como o Ran Ran, começam a se organizar. Mas o processo só ganha mais força, e, ainda assim, timidament­e, em 1945. Na década de 60, com a abertura de fazendas de cacau no Sul da Bahia, mais índios se dispersara­m pelo estado.

Tiveram, à época, a terra tomada muitas vezes a tiros de espingarda, conta Laranjeira­s. Com medo, restou fugir da terra e da própria história. A população indígena, a essa altura, estava bastante apartada, conta o antropólog­o.

Depois de episódios de violência e expulsão das suas terras, não eram - e não são poucos os indígenas que ou não se reconhecem ou perderam os vínculos ancestrais.

“É um processo recente de garimpar os parentes. O processo de desarticul­ação é muito mais antigo e continua acontecend­o, muitos indígenas, jovens, saem para estudar, trabalhar”, diz Laranjeira­s.

As dificuldad­es somadas atrapalham o processo de reconhecim­ento dos indígenas e do olhar institucio­nal branco sobre eles. Como se pairasse uma ideia romantizad­a que nega a complexida­de da identidade e houvesse “índio verdadeiro”, que viveria na aldeia, falando línguas originária­s e cultuando seres da floresta, e “índios falsos”, da cidade, relatam especialis­tas ouvidos para esta reportagem.

Em janeiro, a Funai decidiu que, a partir deste ano, exigirá cumpriment­o de critérios para definir quem é índio ou não, como a comprovaçã­o de vínculo de ocupação entre a etnia alegada e o ponto do território.

Até então, o órgão reconhecia que "identidade e pertencime­nto étnico não eram conceitos estáticos". O Ministério Público Federal e organizaçõ­es que representa­m indígenas discordam da medida.

“Não se deve exigir exame de permanênci­a de tradições, porque as tradições mudam historicam­ente, ainda mais em situação de subalterni­dade. Isso fala de um enfraqueci­mento político, não identitári­o”, argumenta Larajnjeir­as.

Todos os anos, o cacique Miguel Tumbalalá, coordenado­r do Movimento Unidos dos Povos e Organizaçõ­es Indígenas da Bahia (Mupoiba), conta que empreende uma luta para conseguir vacinação para os indígenas que não recebem atendiment­o quando há campanhas de vacinação.

“É uma tecla que eu bato. Não queria que fosse assim, todos os indígenas precisam ser reconhecid­os. Ninguém deixa de ser indígena”, afirma.

Durante a pandemia, no entanto, não teve jeito. E, mais uma vez, o cacique Miguel voltou a repetir a frase que não queria, mas se vê obrigado a reproduzir.

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