Correio da Bahia

MEMÓRIAS DOS CARNAVAIS DE MORAES

Homenagem O artista alimentou a folia baiana de canções, influencio­u gerações e marcou a festa

- Clarissa Pacheco REPORTAGEM clarissa.pacheco@redebahia.com.br

Um ato de desobediên­cia deu a Moraes Moreira um posto praticamen­te inquestion­ável no Carnaval de Salvador: o de primeiro cantor de trio elétrico. Era1975,umdosCarna­vaispara ficar na memória do artista, e já fazia algum tempo que o trio de Dodô e Osmar tinha um microfone. Mas não era para cantar, e sim para dar recados. Ao ligar o microfone, não por acaso apelidado de ‘Boa Noite’, o restante do som tinha que ser desligado para evitar microfonia. Moraes nunca ligou muito para isso.

Ele queria cantar a qualquer custo, explica o historiado­r Rafael Rosa, mestre em História Cultural e autor do trabalho Na trajetória do trio. “Moraes já estava em cima do trio e ele não obedecia muito a essa lógica de ‘não pegue o microfone’. E cantava com microfonia e tudo, comendo no centro. Ele vai ser esse ousado que não se deixa disciplina­r por Osmar, porque ele achava que a voz era importante”, explica Rosa.

Os amplificad­ores do trio de Dodô e Osmar eram cornetas gigantes. Os músicos ficavam de cima do trio, puxando frevos e outras músicas, mas quem cantava era o povo, do chão.

Outros cantores já tinham passado pelo trio, como Gilberto Gil e Pepeu Gomes, mas nenhum foi tão desobedien­te quanto Moraes. “Ele criou um estilo de impostação e colocação de voz que era compatível com o som de fusíveis”, afirma o historiado­r Milton Moura, pesquisado­r do Carnaval. Moraes foi o homem que, literalmen­te, subiu no trio com canção e tudo. Marcou o Carnaval de 1975 ao cantar Jubileu de Prata, gravada com Armandinho

em 1974, em homenagem aos 25 anos dos trio elétrico.

“Eu achei que ele ia sair só curtindo. Quando ele viu o microfone, ele pegou e cantou o Jubileu de Prata”, lembra Armandinho, amigo e parceiro musical de Moraes.

“Numa noite de trio elétrico, ele cantava umas duas ou três vezes. A gente dizia que Moraes estava esboçando os primeiros cantos. E ele: ‘Porra, esboçando não, eu cantei!”, conta Armandinho, aos risos.

Moraes ainda estava no grupo Novos Baianos e a gente saiu no meio da rua a pé, com os instrument­os na mão fazendo uma brincadeir­a Paulinho Boca de Cantor

Cantor, amigo de Moraes Moreira desde o tempo dos Novos Baianos

PARTE DA FESTA

O baiano de Ituaçu parecia prever, lá em 1975, que faria história do Carnaval da capital. Antes de subir no trio, inclusive, foi para a rua com os instrument­os na mão, a pé. Para cantar, é claro! Quem conta essa história é Paulinho Boca de Cantor, companheir­o dos tempos dos Novos Baianos.

Era 1974: “Moraes ainda estava no grupo Novos Baianos e a gente saiu no meio da rua a pé, com os instrument­os na mão fazendo uma brincadeir­a, mostrando a nossa vontade de participar do Carnaval não só como folião, mas também como artistas”, lembra.

Para ele, Moraes é indestrutí­vel. “Ele se foi, mas é uma presença na vida da gente todos os dias, ao ponto de a gente pensar que ele está sempre perto. É a consciênci­a de que é indestrutí­vel”, afirma, sobre o amigo que partiu em 13 de abril do ano passado, menos de dois meses após o último show no Carnaval de Salvador, em 22 de fevereiro.

Ele é uma figura tão importante que todos os anos que esteve presente, a gente tem ele inventando e reinventan­do o Carnaval Rafael Rosa Historiado­r, mestre em História Cultural, autor do trabalho Na trajetória do trio

Cantor, amigo de Moraes, filho de Osmar

O ELO

Dos Carnavais de Moraes, Chão da Praça é o hino de minha geração Milton Moura Historiado­r, sobre o hit de Moraes do final dos anos 1970

Para o historiado­r Rafael Rosa, que estudou a canção carnavales­ca baiana, Moraes Moreira foi decisivo para o Carnaval na ‘dobradinha’ de 1974 para 1975, entre deixar os Novos Baianos e se tornar o ‘quinto’ dos irmãos Macedo, filhos de Osmar. Não por aca

be a gente se encontre em cima do trio’”, disse Daniela.

O encontro não aconteceu, mas a artista compôs um frevo em homenagem a Moraes, gravado este ano junto com Gal Gosta, que também gravou ‘Festa do Interior’, um de seus maiores sucessos.

No final dos anos 1990, Moraes se afastou do Carnaval de Salvador. Faltava apoio para os trios independen­tes, sempre no final da fila, e prestígio aos artistas que construíra­m a história do Carnaval. Voltou em 2000 para uma homenagem aos 50 anos do trio. “Ele se foi com um pouco dessa mágoa. Moraes se revoltava muito com isso e ele se afastou. Se o povo reconhecia o artista, por que a oficialida­de não reconhecia?”, questiona Paulinho Boca.

Em 2010, ele voltou para os 60 anos do trio. E ficou. Até 2019, teve a companhia do filho, Davi Moraes. Cantavam juntos no palco e em trios, depois nos pranchões, mais perto do público.

“Ali ele atingiu um objetivo, revitalizo­u o Carnaval da praça Castro Alves de uma forma que a praça recuperou, começou a ter um público maravilhos­o de novo. Lotada a praça, só tinha família. Foi muito emocionant­e se dedicar à praça, que era um xodó dele”, lembra.

1974 Ainda nos Novos Baianos, Moraes e os outros integrante­s saíram nas ruas de Salvador durante o Carnaval, a pé, carregando os instrument­os. Era uma forma de dizer que eles queriam participar da festa e não só como foliões.

1975 Moraes pegou o microfone no trio de Dodô e Osmar e cantou Jubileu de Prata, música em homenagem aos 25 anos do elétrico. Foi com microfonia e tudo.

1976 Moraes já não estava nos Novos Baianos, mas houve um encontro de trios: ele com Dodô e Osmar em um trio, os Novos Baianos no outro. Quando Baby viu Moraes cantando, perguntou a Seu Osmar se também podia cantar, e ele respondeu que sim.

1978 Foi o Carnaval do Pombo Correio. Moraes colocou letra na música de Dodô e Osmar que se chamava Double Morse. Virou Pombo Correio. Foi o ano da morte de Dodô.

1985 Chame-Gente, grande parceria de Moraes Moreira com Armandinho, nasceu em 1985. Nos anos 1980, Moraes começou a colocar na rua seu próprio trio independen­te e fazer encontros com Armandinho, Dodô e Osmar.

1990 Moraes Moreira e Pepeu Gomes fizeram no primeiro dia do Carnaval de 1990 o lançamento de um álbum que tinham gravado juntos. Teve reencontro dos Novos Baianos no trio.

2000 No final dos anos 1990, Moraes se afasta do Carnaval de Salvador, sem apoio dos organizado­res. Em 2000, faz uma breve aparição para comemorar os 50 anos do trio elétrico. Teve direito a encontro de trios no Farol da Barra.

2010 Depois de oito anos longe do Carnaval de Salvador, Moraes retorna para uma homenagem aos 60 anos do trio elétrico. Passa a se apresentar ao lado do filho, Davi Moraes.

2018 Por dois anos seguidos, Moraes Moreira e o filho, Davi Moraes, se apresentar­am num trio pranchão, na Praça Castro Alves. “A gente resolveu parar um pouco do circuito Barra-Ondina para se dedicar à praça, que era um xodó dele”, conta Davi.

2020 O último Carnaval de Moraes, desta vez sem Davi. O último show foi no dia 22 de fevereiro, na Praça Castro Alves.

é feita das histórias, que 2021, o ano em que todos ficaram em casa enquanto o ‘Bloco dos Mascarados’ monopolizo­u as ruas, seja apenas lembrada como mais uma delas.

O historiado­r e pesquisado­r de Carnaval Milton Moura acredita que o efeito já visto nas festas de Iemanjá e São João, onde parte do público prefere celebrar em casa ao invés da rua, pode se repetir na folia. “Não que a rua vá perder importânci­a. Até porque o Carnaval é a aglomeraçã­o prolongada de um número imenso de pessoas. Mas os artistas encontrara­m, através das lives, uma nova forma de se comunicar com seu público, e isso agradou algumas pessoas. Isso vai estimular reuniões com ‘pequenas multidões’”, analisa.

O impacto desta mudança vai depender, na opinião de Milton, da midiatizaç­ão que esta nova forma de curtir a folia vai ter. “Um exemplo é o Carnaval do Rio de Janeiro e São Paulo, onde boa parte dos apreciador­es jamais pisou no sambódromo. Os camarotes são algo parecido aqui em Salvador, mas eles ainda estão, de alguma forma, dentro dos circuitos”, pondera.

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