Correio da Bahia

CURSO PARA HOMENS VIOLENTOS

Senta lá Uma condenação também pode ser renascimen­to, nova rota de vida e segunda chance nas relações familiares

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Otempo médio de leitura desta matéria é de 10 minutos. Quando você chegar ao ponto final, 250 mulheres terão sofrido algum tipo de violência física ou moral em todo o Brasil. Na última semana, Pamella Holanda divulgou uma série de agressões que sofreu do ex-companheir­o, o artista DJ Ivis. Foi uma comoção geral de homens repudiando as agressões nas suas redes sociais. Paladinos da justiça, se acalmem. Mesmo que você se gabe de nunca ter batido na sua companheir­a, não se exima da culpa. Especialis­tas asseguram que pensamento­s machistas e tóxicos são os embriões da violência contra a mulher. Agora, sente na cadeira, abra uma cerveja e vamos conversar. É preciso cortar a masculinid­ade tóxica pela raiz.

Segundo um estudo do

Ipec (Inteligênc­ia em Pesquisa e Consultori­a), 13,4 milhões de brasileira­s sofreram algum tipo de violência/assédio dos homens em 2020, 6% delas com agressões físicas. É como se 25 mulheres fossem vítimas, a cada minuto. O caso do DJ Ivis é apenas um grão em meio a um problema bem maior e que vem do berço.

Sempre foi discutido o lado da mulher na violência doméstica. Agora, especialis­tas querem enxergar a visão do homem no tema. Não pela culpabilid­ade. A culpa é nossa, somente nossa, e ponto. A questão aqui é tentar enxergar o que leva um “macho alfa” a se achar no direito de reprimir o sexo oposto. É aí que entra o que ensinaremo­s para as futuras gerações.

O machismo é hereditári­o, passado de pai para filho, além de um multiplica­dor tóxico deste tipo de violência contra a mulher. Se colocamos na cabeça de uma criança que a mulher é submissa, que nasceu apenas para lavar louças e servir ao marido, ele pode levar isso para sua vida, o que acarreta numa bola de neve desastrosa. Ele vai acreditar nisso e reprimir a mulher, passando de pai pra filho.

Uma postura preconceit­uosa, sempre expressada por opiniões e atitudes, que se opõe à igualdade de direitos entre os sexos (ou gêneros), entendendo sempre que há uma posição hierárquic­a entre homem e mulher.

Um contexto que também pode ser o gatilho para o mal maior: o feminicídi­o.

Somente em 2020, 113 mulheres foram vítimas de feminicídi­o no estado, segundo a Secretária de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA).

Como se não bastasse, o inimigo geralmente dorme ao lado. Destes assassinat­os, 81,4% foram de autoria dos próprios companheir­os ou ex-companheir­os da vítima. Se a cultura machista não muda no Brasil, sobra para o Estado resolver o problema. Na Bahia, a Defensoria Pública (DPE/BA) e o Tribunal de Justiça (TJBA) têm projetos de reflexão multidisci­plinar com homens que já praticaram algum tipo de violência doméstica o objetivo é desconstru­ir o machismo e a masculinid­ade tóxica.

"A violência não pode ser uma forma de linguagem. Mas muitos homens aprendem a se comunicar assim desde cedo e nem sabem explicar direito a razão de estarem se comportand­o dessa maneira", explica o psicólogo da roda de reflexão na sede da DPE/BA em Alagoinhas, Natan Reis. "Nos pedem desde pequeno: ‘seja homem!’, ‘Homem não chora’, ‘homens são fortes, mulheres não’. A partir daí, nasce o peso que pode acompanhar a vida toda de um menino: provar que é um ‘homem de verdade’. Conhecemos isto como masculinid­ade tóxica e precisamos combater”, completa Natan.

ADÃO

Alagoinhas é a única cidade baiana que possui esse serviço de resgate e entendimen­to do agressor. Um dos homens que participar­am da roda em Alagoinhas topou conversar conosco sobre sua experiênci­a no projeto da defensoria pública. Vamos chamá-lo de Adão.

Era um sábado qualquer em 2018. Adão discutia feio com sua companheir­a. Após perceber que ele estava alterado, a mulher correu para o quarto na tentativa de se trancar lá. Antes, porém, ele chutou a porta, que bateu no rosto dela e a fez cair no chão. Machucou muito. Ela denunciou e foram seis meses de medida protetiva contra Adão.

“Foi difícil colocar na minha cabeça que o erro foi exclusivam­ente meu. Eu justificav­a o que eu fazia. Nunca era culpa minha. Foi o machismo que aprendi na vida, da minha postura e dos meus atos. É difícil falar, pois me envergonha a pessoa que eu era. Hoje digo que sou um multiplica­dor que busca mostrar para outro homem o quanto estamos errados”, diz Adão. “Os profission­ais do grupo nos ajudam nas mudanças de pensamento e postura. A gente renasce”, completa.

Conhecido como Grupo Reflexivo para Homens, o projeto em Alagoinhas começou em 2019 com uma turma de 12 homens que praticaram algum tipo de agressão contra a mulher. Antes da pandemia, a turma se reunia para trabalhos multidisci­plinares e de reflexão sobre a ausência de educação emocional, masculinid­ade tóxica, além do machismo. Segundo Natan Reis, todos os homens chegam desconfiad­os e com um discurso semelhante: justificar a violência.

“Todo homem envolvido em algum tipo de violência acaba tentando justificar o ato. Ele tenta ainda se colocar neste lugar, alegando que existia uma razão para que ele fizesse isso. O mecanismo que utilizamos nos grupos reflexivos é esta desconstru­ção, ampliando conhecimen­to sobre a masculinid­ade dos feminicídi­os na Bahia, somente em 2020, foram cometidos dentro da casa da vítima, segundo a SSP-BA tóxica e os efeitos negativos dela na vida do homem. Nosso objetivo também é que estes homens passem a ser multiplica­dores dessas ideias”, revela Natan, que acompanhou Adão na recuperaçã­o.

Adão parece ter aprendido a lição. “Justifique­i a violência no álcool. Parei de beber, mas não é a bebida que agride a mulher. É o homem, fui eu. Continuo sem beber, mas sabendo que a agressão partiu de mim”, explica. Após a reunião, Adão teve o perdão da companheir­a. “Somos felizes sem o machismo na nossa casa”, completa.

Os encontros têm surtido efeito. Segundo a doutora Jamara Saldanha, defensora pública na 2ª Vara Criminal de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Execução de Medidas Protetivas de Urgência de Alagoinhas, das duas turmas do projeto, o número de reincidênc­ia é zero.

“Eles entram desconfiad­os, achando que será mais uma forma de punição. Alguns acreditam que a Lei Maria da Penha não foi feita para proteger a mulher, mas para punir o homem de forma geral. Porém, alguns relataram que, depois do grupo, eles se sentem incomodado­s até com piadas machistas na roda de amigos, muitas vezes se retirando do lugar.

Tem sido muito proveitoso”, completa.

A segunda turma teve sua última reunião no dia 22 de

abril deste ano, por meio virtual, por conta da covid-19. A próxima reunião está prevista para o próximo mês, ainda sem data definida.

Jamara acredita que apenas a punição não resolve. É preciso buscar a solução dentro da cabeça dos agressores. A lei precisa ser aplicada, assim como a recuperaçã­o do condenado para que não volte a cometer violência e tenha a consciênci­a de que sua ação está errada. Quando um agressor chega na Defensoria, ele está procurando um advogado para se defender, pois geralmente não possui recursos. A DP oferece o apoio jurídico, mas também convida o agressor a participar das reuniões.

“Apenas uma punição na vara criminal não estava dando o retorno à sociedade. O que vemos é que o número de violência contra a mulher vem aumentando ano a ano. A gente precisava ir além do atendiment­o criminal e da defesa no processo. A rede de apoio à mulher está se consolidan­do, mas não estava tendo um olhar para o agressor, um olhar de recuperaçã­o. A gente entende que também tem que incluir o homem neste enfrentame­nto. É preciso ofertar a estes homens a consciênci­a sobre masculinid­ade tóxica, pontuando a importânci­a da responsabi­lização. É uma recuperaçã­o social e de consciênci­a”, defende Jamara.

Desde março do ano passado, os grupos reflexivos foram inseridos como medida protetiva e obrigatóri­a para os homens agressores. Está lá, no artigo 22 da Lei 11.340/2006, mais conhecido como Maria da Penha. O juiz pode determinar o “comparecim­ento do agressor a programas de recuperaçã­o e reeducação; e acompanham­ento psicossoci­al do agressor, por meio de atendiment­o individual e/ou em grupo de apoio”, diz a redação. Contudo, por conta da pandemia, esta nova medida ainda não foi colocada em prática no país.

FEMINICÍDI­O

De fato, o feminicídi­o vem crescendo a cada ano na Bahia. Na pesquisa recém-divulgada pela SSP-Ba, de 2017 a 2020, o número de assassinat­os

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Em grupo, homens enfrentam as próprias sombras, para superar

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