Uma mãe que canta, reza e alimenta
Caetité Dona Chica teve três dos oito filhos vítimas de suicídio; hoje, promove sopão contra a fome
Dona Chica, 74 anos, é uma mãe que conhece perdas e gosta de caminhar sozinha em estradas vazias para organizar os pensamentos e relembrar a saudade. Às vezes, letra e melodia jorram no pensamento e ela, que sempre trabalhou com a terra, se torna compositora. “Minha cabeça rodava, no meio coração doía, perdi a força do amor, coisa melhor não existia”, cantarola uma das suas composições, dedicada a um filho que nunca esqueceu.
Nos últimos tempos, Francisca Valdivino, conhecida por Dona Chica em Caetité, no sudoeste baiano, diz: “Acho que desaprendi [a cantar], a música foi saindo de mim”. Ainda assim, Dona Chica canta, porque a música não saiu completamente. “Tem gente que fala que a vida é ruim. Se fosse, eu poderia dizer que era ruim, mas eu te falo que vida é boa, e só resta vontade de viver”.
Dona Chica teve três dos oito filhos vítimas de suicídio, entre 1998 e 2016, e queria compor dezenas de músicas para cada um deles. Fez diferente: mandou derrubar o pé de manga e o coqueiro da garagem e passou a receber pessoas que conhecem a fome.
Há 13 anos, Dona Chica promove, na casa dela, um sopão. Não é música, mas para ela fazia sentido ajudar outras pessoas. A ideia veio de um vizinho. Mas, Dona Chica tinha pouco, o suficiente para a família. “Mas foi acontecendo”, conta. Antes da pandemia, o sopão acontecia três vezes por semana. Agora é às sextas.
ao qual se refere Lobão.
Da mesma forma são subjetivos os nossos sentidos, especialmente os gustativos e olfativos, guiados por uma memória emocional que pode fazer com que a mais deliciosa comida não desperte absolutamente nada para alguém que a tenha experimentado em dia de paladar distraído por uma gripe ou alterado por uma alergia, porque também as questões fisiológicas e particularidades genéticas de cada um cabem no discurso do gosto.
Uma mesa forrada ou nua, um talher vagabundo ou de herança, os sons do ambiente, a companhia ou solidão à mesa, o chiado de uma fritura vindo da cozinha, uma mosca impertinente, todo e qualquer estímulo sensorial afeta a experiência de comer, influencia a memória do gosto, e tanto podem elevá-lo ao céu como arruiná-lo para sempre na reputação de nossas memórias gustativas.
Portanto o gosto da mesma manga na sua boca é diferente na minha.
Bom é que o gosto é livre, mutante e aventureiro. O gosto aprende, abstrai, refina-se, desdobra-se, educa-se, começa a gostar quando entende o terroir, descobre umamis, se mo-di-fi-ca. Café amargo, ovo escalfado, pão de fermentação natural, comida sem bicho, sem sal, crua, al dente, agridoce, de comer com a mão, doce de feijão, formiga, bicho vivo, chocolate 100% cacau, arroz preto, ostras-vulva cruas e brilhantes, tudo é matéria disponível para aumentar o acervo cultural e ampliar a percepção do mundo pelo gosto. Veja que simplória a idéia de que “gosto não se discute”.
Eu, por exemplo, adoro agridoce. E foi cozinhando para clientes em Maraú durante uma temporada de fim de ano, que inventei um vinagrete com as frutas que sobraram do Reveillon para acompanhar as lascas de carne que resgatei das tradicionais pernas de cabrito marinadas da véspera - repaginadas com um molho ferrugem feito à partir do fundo da assadeira - que entrou para a memória gustativa daquela família e da minha também. Tanto que até hoje vinagrete de frutas pra mim só faz sentido se for para reaproveitamento (de preferência de frutas do Réveillon!) e sou capaz de marinar uma perna de cabrito só para resgatar o gosto daquele momento.
Agora sim, a gente pode dizer que tudo é questão de gosto.